‘Vivemos em um País racista, sim! Não existem direitos iguais’

A Organização das Nações Unidas escolheu o período que começa em 2015 e vai até 2024 como a “Década Internacional dos Afrodescendentes”, cujo tema será “Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”.

 

Sendo o Brasil um dos países com, proporcionalmente, uma das maiores populações negras no mundo, a iniciativa da ONU não pode ser encarada como retórica, mas como uma tentativa de mudar a relação que o País, seus dirigentes e a população mantêm com esse tipo de debate.

 

Por Paulo Godoy Do GEN

 

O advogado João Vicente Miguel sabe que vive em condição de minoria, assim como seus pais e seus filhos, a despeito de 50,7% dos brasileiros serem, declaradamente, negros ou pardos. Filho de um curtumeiro e uma lavadeira, João Vicente disse que em todas as salas de aula em que passou era um dos três ou quatro estudantes negros.

 

Aos 54 anos, aparentando menos idade, fato talvez explicado pelas corridas de 10 a 12 quilômetros que faz em dias alternados e que começam antes das cinco horas da manhã, é casado com Marli e pai de três filhos. Começou a advogar nove anos atrás, após deixar a profissão de contabilista para trás.

 

Nesta conversa, que começou abordando a semana idealizada pela ONU, o advogado falou do preconceito e do racismo existente no Brasil, praticado sempre veladamente e com os mais diferentes argumentos, das cotas nas universidades públicas e do processo histórico que cerca a realidade desigual entre brancos e pretos no Brasil.

 

Sem meias palavras ou melindres, acredita que o sistema prisional e policial brasileiros apenas reflete a própria sociedade com tantos negros e pardos detidos ou presos. Seu filho mais velho, com 25 anos, começou a advogar com ele em seu escritório, mas trata-se de uma exceção e de uma realidade que os próprios negros, em sua opinião, têm o dever de tentar mudar.

 

‘É preciso lutar mais pelos seus direitos.

 

Não dá para culpar o Estado ou a sociedade por tão poucos negros entrarem e cursarem uma faculdade. O negro não pode passar a vida se diminuindo’, disse ele. Pós-graduado em Direito Previdenciário, membro da Comissão de Direitos Humanos da subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, em Franca, João Vicente é integrante da Comissão Municipal de Desenvolvimento da Comunidade Negra. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como será essa ‘década’ instituída pela ONU?

O objetivo primordial é promover o respeito, a proteção e a realização dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos afrodescendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. O período será uma oportunidade para se reconhecer a contribuição significativa dos afrodescendentes às sociedades e propor medidas para a promoção de sua inclusão e ao mesmo tempo combater todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e qualquer tipo de intolerância.

Diante de um tema tão extenso, quais serão os principais focos?

O fortalecimento da cooperação e as ações regionais, nacionais e internacionais relativas ao pleno gozo dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos pelos afrodescendentes, bem como sua participação plena e igualitária em todos os aspectos da sociedade. Também a promoção de um maior conhecimento e respeito ao patrimônio cultural e contribuições dos afrodescendentes para as sociedades.

O senhor vive hoje melhor do que viveram seus pais no que diz respeito ao preconceito de cor?

Acho que minha família vive uma situação melhor que a de nossos antepassados. Se formos analisar a situação de hoje para o negro, com relação ao que sofreu antes, é evidente que no passado o negro sofreu mais no Brasil. Isso impediu que ao longo das décadas o negro pudesse ter um desenvolvimento maior. Desde a pós-libertação da escravatura no Brasil (1888) o negro vem sofrendo preconceito e atrocidades maiores. Aquele pessoal lá de trás não tinha condição para nada. Quando recebeu sua carta de alforria, ele não tinha condições de se estabelecer no comércio, na agricultura, em nada. Foi colocado à margem da sociedade. Nessa condição, sem respaldo algum, se viu jogado.

Com tanto tempo – 125 anos – após a libertação dos escravos, por que a ascensão social do negro ainda é tão lenta e desigual no Brasil?

Porque a sociedade age em razão de um impulso, que é uma norma, uma lei, mas, no íntimo, ninguém pretende que as coisas sejam mudadas. O cumprimento da lei é imposto. Isso vai existir por muitos anos e só pode ser mudado pela cultura, que começa dentro de casa. Cada pai deve sentar com seus filhos e falar que não há diferença entre um branco e um negro. Todos são iguais, não apenas perante a lei, mas em espírito. Não há sentido em discriminar alguém em razão de sua raça, cor, porte físico, sexualidade.

 

Há quem defenda que o racismo existente no Brasil é velado e muito forte. Somos um país racista?

Somos, sim. Não existem direitos iguais entre branco e preto. O direito, que é subjetivo, se manifesta de várias maneiras. Existem diversas formas de um branco deixar de conceder um direito a um negro sem que pareça racismo declarado. Usa-se outro argumento para o racismo não aflorar. Tenho um exemplo de um cidadão negro, com pós-doutorado nos Estados Unidos, que pretendia uma vaga em uma grande empresa de São Paulo. Na entrevista ele foi deixado de lado. O chefe de recursos humanos dessa empresa disse que ele era fantástico, mas que havia faltado um pequeno detalhe em seu perfil para que ele ficasse com a vaga. Passados alguns meses ficamos sabendo que quem assumiu a vaga foi um candidato com uma especialização menor, porém branco. Não preciso dizer mais nada. Infelizmente não tem como demonstrar uma realidade diante de tantos subterfúgios.

As faculdades têm um número insignificante de alunos negros. Por que isso acontece?

Sempre fui um dos três ou quatro alunos negros em todas as escolas pelas quais passei. Alunos negros não passam de 5% nas faculdades, enquanto o último censo do IBGE mostrou que 51% da população brasileira está dividida entre negros e pardos. Os brancos, portanto, são minoria. Não posso culpar o Estado ou a sociedade por esse retrato. Culpo o próprio indivíduo. Se todos têm condições de prestar um vestibular e entrar em uma faculdade, por que tão poucos estão no ensino superior? Talvez por se julgar inferiorizado, o negro não compete porque se sente derrotado mesmo antes de começar.

O senhor vem de uma família simples?

Meu pai era curtumeiro e minha mãe, lavadeira de roupas. Vieram da roça. Se eu fosse pensar por esse lado, não tinha feito nada, estudado. A condição deles não me permitia imaginar fazer um vestibular, cursar uma faculdade de Direito e ser advogado.

O senhor ou a sua família passou por momentos de racismo?

Isso, infelizmente é comum. Não apenas em tom de brincadeira, mas no meio profissional. Eu tenho vários processos no interior de São Paulo e Minas Gerais e é comum as pessoas pararem o que estão fazendo para observar um negro de paletó e gravata. Chama a atenção, quando era para ser comum. ‘Ah, um negro advogado. Muito bem! Um branco advogado. Muito bem! Um índio advogado. Muito bem!’ Numa pequena cidade em que fui trabalhar, algumas pessoas saíram de um restaurante porque havia uma ‘coisa’ diferente na rua. E essa ‘coisa’ diferente era eu (ri). Eu me senti o próprio Barack Obama (presidente dos Estados Unidos). Deveria ser igual para todos, mas não é.

O senhor se envolve no debate público das questões que envolvem a igualdade de direitos?

Faço parte da Comissão Municipal de Desenvolvimento da Comunidade Negra em Franca. Sempre fui militante em prol da nossa raça.

Um dos assuntos quase obrigatórios nessa discussão é a criação das cotas para estudantes negros nas universidades públicas brasileiras. O senhor acha que as cotas eram necessárias?

Meu ponto de vista é que o Brasil tem uma dívida com a sua população negra e essa dívida tem que ser reparada. Não importa como. E vai reparar, mesmo que seja por meio de lei. Recentemente foi decretado que a contar desse, os concursos do Executivo federal terão uma reserva de 20% para candidatos negros. As cotas vieram para ficar eternamente? Acho que não. Ficarão até que o povo brasileiro entenda no seu íntimo que o negro é tão igual como o branco, em todas as situações. O negro não precisaria de cotas se não fosse o sistema carregado de preconceito que existe no País. Se não for por força da lei, não será pelo reconhecimento natural desse direito. Isso jamais vai existir ou, se acontecer, vai demorar gerações. Talvez nossos netos e bisnetos vão viver em um Brasil em que brancos e negros estarão em igualdade.

A cota, por sua vez, não desequilibra o próprio direito de igualdade no processo seletivo? O negro não passaria a ter benefícios? E isso não acirra mais a questão racial?

De espécie alguma. Ele não está sendo beneficiado; ele está sendo reparado. E o racismo existe com ou sem cotas.

Historicamente a população de negros e pardos compõe a maioria dos presos e detidos no Brasil. O Poder Judiciário e as polícias são racistas e refletem a sociedade?

Acho que no meio policial, sim. É mais fácil apontar um negro como um membro problemático da sociedade, do que um branco. Se um negro e um branco forem flagrados correndo, certamente a polícia vai pegar um deles, preferencialmente o negro.

Como o senhor enxerga o espaço que a questão racial ocupa hoje em dia?

Ainda é muito forte. Um negro e uma branca, por mais que se amem, vão enfrentar problemas. Será que as famílias dos dois vão aceitar? É algo que fica para se pensar.

O senhor acredita que seus filhos têm mais consciência de seus direitos quando comparados ao senhor ou aos seus pais ou que terão um País melhor para viver no futuro?

Eu creio que sim. Nos meus 15 anos de idade eu enfrentava situações que eram comuns, de ofensa à minha cor, aos meus cabelos. Era brincadeira de colegas de escola. Hoje existem leis que protegem o negro desse tipo de atitude. No meu tempo não tinha nada disso. O que eu passei, graças a Deus, meus filhos não passam e os meus netos jamais imaginarão que o avô deles tenha passado. Espero que seja assim, afinal de contas o mundo evolui. Quem diria que um dia teríamos um pardo na presidência dos Estados Unidos?

O senhor acha que o Estado brasileiro deve um pedido formal de desculpas às populações negras da África?

Claro. Já deveria ter pedido há muito tempo. Certamente isso teria contribuído para que o País fosse um tanto quanto diferente nesse aspecto. Tudo começa com a autoridade dando exemplo.

Nunca nenhum juiz ou promotor olhou torto para o senhor pelo fato de ser negro?

Se olhou, não demonstrou. Mas é natural que em qualquer situação você seja mais observado quando é diferente. E é diferente você chegar numa pequena cidade, com poucos advogados, e entrar na sala do juiz sendo negro. Isso vai mudar quando nossas faculdades tiverem classes com 40 ou 50 alunos em que a metade for negra. Olha o tamanho de Franca. Quantos médicos ou engenheiros negros existem aqui? Por isso ocorre o impacto. O negro deve fazer sua parte. Competir, lutar por seu espaço.

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