Semana passada um vídeo com uma intervenção em uma sala de aula na USP viralizou. Nele vemos o destemido papo reto de uma integrante do coletivo negro responsável pelo ato. Ao longo do vídeo, motivado por uma série de pichações racistas em um banheiro da unidade, ouvimos reivindicações por respeito e condenações aos alunos e à sociedade branca que se calam diante de repetidos atos discriminatórios. Dentro e fora da universidade. E como era de se esperar essaafronta aos herdeiros da Casa Grande não ficou impune. Capatazes virtuais prontamente devassaram a vida das três meninas e as expuseram na nova praça de repúdio público: o Facebook.
Por LEOPOLDO DUARTE, no Os Entendidos
A fala, sem meios termos, da representante negra causou maior indignação do que com as pichações de julho que tudo motivaram. Frases como: “preto deve morrer”, “preto é escravo” e “fora macacos lugar de negro é na senzala” produziram pouquíssimas manifestações além das vistas na blogsfera antirracismo. O fato de três mulheres negras terem tido “a petulância” de entrar numa das instituições mais tradicionais do país, para problematizar um sistema “meritocrátrico” — que desde sua fundação garante cota majoritária de vagas a eurodescendentes —, provocou uma comoção extremamente desproporcional quando se compara ao vandalismo racista que acabou passando em branco. O grupo ofendido, ao gritar um “basta” virou alvo de novas agressões.
Porém, de todo o discurso, a fala que mais gerou incômodo foi: “Vocês nos devem até a alma”. Inúmeros memes e piadas foram feitas a partir da interpretação mais superficial disso. Não só porque pessoas brancas se recusam a aceitar qualquer responsabilidade pelo legado racista de seus antepassados que, ainda hoje, as coloca numa posição de superioridade estética, moral e intelectual em relação as demais etnias, como também porque pessoas brancas — e embranquecidas —, comodamente se esquecem de que a história desse opressão teve início com a argumentação de que pessoas negras não seriam seres humanos por não possuírem “alma”. Ou seja, além da incomensurável dívida, moral e econômica, que a sociedade branca tem com a população negra, a história nos diz que europeus também roubaram as almas de africanos.
Visto que toda riqueza e luxo construídos no Brasil se deram — e ainda se dão — às custas do sacrifício e exploração de vidas negras, é de se espantar que essa multidão que defende ou se julga a elite intelectual do país apresente tamanha dificuldade em reconhecer essa dívida histórica. Parece haver um enorme clarãono quesito história brasileira do povo negro. Um lapso de memória sobre o débito que os governos europeus e das Américas têm com o continente e as vidas que saquearam e vilipendiaram em nome do “progresso” da civilização européia. Talvez todos esses revoltados tenham se esquecido de que após séculos de abusos dos mais cruéis, ao término da escravidão, o governo brasileiro não indenizou os ex-escravos, mas sim os ex-senhores de escravos pelo prejuízo gerado.
Antes que alguém venha usar o Holocausto judeu para falar que exigir qualquer tipo de recompensação é vitimismo, sugiro a leitura desse texto sobre as medidas tomadas pelo governo alemão na tentativa arcar com a responsabilidade histórica do nazismo. Obviamente dinheiro nenhum será suficiente para ressarcir todo o sofrimento causado, mas o esforço se torna válido por punir, mesmo que simbolicamente, a sociedade por trás dos governantes oficiais.
Caso não tenha ficado evidente até agora, há sim uma dívida real do estado e da sociedade brasileira com todos os descendentes de africanos escravizados. Não apenas porque muito se lucrou com a escravização e a animalização desses antepassados negros, mas também por uma questão de justiça.
Vale lembrar também que se hoje existe uma lei de cotas em universidades para pessoas negras não foi por um gesto de consciência e generosidade do estado brasileiro, mas sim porque militantes negros reivindicaram politicamente esse tipo de ação afirmativa. Cotas raciais representam o início de uma retratação há muito adiada e ignorada. Simbolizam o começo de um longo caminho até que descendentes de africanos escravizados e o resto da sociedade, um dia, desfrutem de oportunidades iguais de sucesso, já que o racismo faz com que pessoas brancas com a mesma formação de seus colegas negros, estatisticamente, recebam 47% a mais que estes.
No entanto, apesar da lei das cotas em universidades ser uma conquista já legalizada, demonstrações de ignorância histórica e racismo como as observadas em relação ao vídeo/protesto e a relutância de parte da população em relação a elas revelam que a inserção legal de pessoas negras em ambientes, antes exclusivos à elite branca, ainda causam enorme incômodo. As pichações racistas, que têm se tornado cada vez mais comuns em universidades públicas e particulares, e o silêncio coletivo diante delas, acabam, portanto, exemplificando a enorme distância entre o discurso de democracia racial e a aceitação das medidas legais que garantem a concretização desse ideal a longo prazo.
Por fim se faz necessário ressaltar que não adianta utilizar as viagens ao exterior de uma das ativistas do vídeo para desqualificá-la como oprimida. Sistemas de opressão não requerem escolhas individuais para funcionar e nem tampouco exceções inabilitam as regras. Independente de uma pessoa negra ter boas condições econômicas ou ter sido eleita presidente da maior potência bélico-financeira do mundo, o racismo oprime todas democraticamente. Até aquelas pessoas negras que teimam em acreditar que vivemos num país de não-racistas. Até porque racismo parte da discriminação por fenótipo e não por classe social. #OChoroÉLivre