A voz da favela contra a pirotécnica política de segurança pública oficial

Ao longo desses últimos dois meses as áreas periféricas e marginalizadas da zona sul e norte carioca padeceram do mesmo percalço desencadeado por uma míope política de segurança pública alcunhada pela “presença militar nas favelas”.

Por Agni Hevea, do Jornal do Brasil 

A presença militar do Exército brasileiro e os fuzileiros navais – mesmo que de patente descompasso com as forças de segurança conhecedoras do território da malha urbana a ser pacificada –  ocuparam algumas favelas cariocas, como a Maré, Rocinha, entre outras. Os “periquitos”, nome dados aos militares pelos moradores das favelas, passaram a fazer o papel infeliz de conter a violência urbana. Infeliz porque serviram como “ponta de iceberg” ao levar às favelas com seus blindados e fuzis ao invés da infraestrutural cultura, saúde, educação, saneamento, moradia digna, etc. Contudo, a maioria dos moradores tanto do “morro” como do “asfalto” viu nessa iniciativa um alento aos dias de “chuva forte” dos tiros de fuzil dia e noite.

Mesmo com o fim da “intervenção militar”, como se já não fosse cotidiana com as forças especiais estaduais (Bope e Core) ou do contingente formado no projeto UPP, a PAZ nas favelas não foi alcançada – como já apontavam muitos especialistas e pesquisadores de diversos centros de pesquisa e universidades.

Tal conjuntura é agravada pela incorporação da narrativa da escassez em que os cortes na segurança pública e o deslocamento do contingente de servidores para as áreas nobres da cidade são corroborados pela tônica reativa que prescinde a supressão de direitos e garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Inúmeros flagrantes e incidentes criminais derivados da conduta oficial e oficiosa dos agentes públicos da segurança têm deixado os moradores das favelas cariocas receosos em deixar seus lares para trabalhar ou se abrigar na casa de algum amigo ou parente – mesmo que pra muitos, opção remota –  em função dos arrombamentos de lares e apreensões de pertences e bens materiais sob o auspício da ficção jurídica chamada de mandado de busca coletivo.

Neste particular, inúmeros garantias constitucionais inerentes à cidadania estão sendo usurpadas:  revistas vexatórias; impedimento do direito de ir e vir com o fechamento de becos e ruas sem prévio aviso ou justificação; invasão de privacidade ao abordar moradores e obrigar estes a desbloquear os telefones móveis em busca de imagens e vídeos incriminatórios; entre outros.

Cabe ressaltar que as comunidades, a exemplo da Rocinha, quer e precisa, mais do que ninguém, que a sua rotina e cotidiano seja reativado, contudo é inadmissível os recorrentes ataques físicos aos moradores e aos membros de ONGs, dentre os quais, advogados populares que são agredidos verbalmente ou impedidos do exercício de suas prerrogativas e garantias da advocacia que ferem não só os advogados e sua equipe, como a todos os advogados do país que se dedicam com ética e à defesa de direitos e garantias fundamentais.

De igual modo, vangloria-se o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, entre outros, são princípios fundamentais do Estado democrático de direito e oponíveis a qualquer brasileiro que queira retirar o protagonismo popular do “governo do povo, pelo povo e para o povo”.

Independente das acepções abertas do direito civil de patrimônio público, bem como àqueles referentes ao direito penal (desacato à autoridade, abuso de poder, etc.), devem estar em consonância com a hermenêutica constitucional que preconiza a harmonia dos institutos infraconstitucionais ao império da lei magna.

A política pública de segurança perpetuar-se-á inoperante se restrita aos milhares financeiros e de contingente humano despreparados para o lidar no complexo tecido urbano e interpessoal, bem como em apostar na “delação premiada” do Disque denúncia quando a “linguagem da favela” é acreditar que a paz só será alcançada por intermédio da consolidação de uma facção no território ou do “arrego” às forças policiais – diante a cultura do enfrentamento casuístico e não estrutural.

Enquanto o executivo padecer da miopia do mero enfrentamento supressor da dignidade dos periféricos sobreviventes deste cenário de guerra e o judiciário negligenciar os direitos dos cidadãos desses “formigueiros humanos” morremos todos: pobres, pretos, mães solteiras, professores, ambulantes, diaristas…fardados ou não.

* Professor, advogado e amigo da Rocinha

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