Entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro, mais de quatro mil pessoas se reuniram em Brasília para a 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, organizada pelo Ministério das Mulheres e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Sob o lema “Mais direitos, mais democracia, mais igualdade”, o encontro marcou a retomada da principal instância de participação social na formulação de políticas públicas de gênero no país, após longo hiato de uma década.
Na abertura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou o caráter histórico da conferência e o simbolismo de sua realização em um momento de reconstrução democrática no Brasil. “Esta conferência é também um grito contra o silêncio. Um grito pela liberdade das mulheres falarem o que quiserem, quando quiserem e onde quiserem. Não há democracia plena sem a voz das mulheres. De todas as mulheres: pretas, brancas, indígenas, do campo e da cidade”, afirmou Lula.
Para Nilza Iraci, coordenadora de Formação, Cuidado e Emancipação de Geledés, a conferência representou um marco de retomada após anos de retrocessos. “A conferência acontece depois de um hiato de uma década atravessada pela pandemia, por um governo extremista e sobretudo por novas tecnologias”, disse, lembrando que mesmo nesse período de ausência institucional, “o movimento de mulheres negras resistiu, produzindo e reivindicando em seu campo específico e em suas lutas as práticas democráticas”.

Entre os diversos eixos debatidos — que incluíram igualdade salarial, combate à violência, saúde integral, cuidado, educação e participação política — o Geledés marcou presença no painel “Dimensão de Gênero e Raça nos Impactos das Mudanças Climáticas”, trazendo ao centro do debate as desigualdades raciais e ambientais que atravessam a vida das populações vulnerabilizadas, em especial as mulheres negras.
A assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés, Mariana Belmont, desconstruiu narrativas que tentam invisibilizar a presença histórica do movimento negro na pauta ambiental, com uma fala contundente. “Essa narrativa não só é falsa como também inviabiliza trajetórias fundamentais de mulheres negras que há décadas alertam para a crise climática e ambiental. Um exemplo incontornável é o artigo de Nilza Iraci Silva, ‘Mulher Negra e o Meio Ambiente ou a In-Sustentável Leveza de Ser’, escrito no contexto da ECO-92. Nele, Nilza denunciava como os processos de industrialização e urbanização impactavam desproporcionalmente comunidades negras e chamava atenção para a urgência de políticas públicas que integrassem raça, gênero e meio ambiente. Esse texto é um marco histórico que desmonta a ideia de ausência e mostra que nós sempre estivemos presentes”, afirmou.
Mariana resgatou a publicação “Há um buraco negro entre a vida e a morte”, organizada por Nilza Iraci e Arnaldo Xavier, que reuniu recomendações do movimento negro para a ECO-92, onde ecoaram também as vozes de sacerdotisas e ialorixás, como Mãe Beata de Iemanjá, referência na defesa socioambiental e climática. Ao reforçar a atualidade desse legado, ela destacou que o conceito de racismo ambiental evidencia “políticas, práticas ou diretrizes ambientais que afetam ou prejudicam (intencionalmente ou não) indivíduos, grupos ou comunidades de forma diferenciada com base em raça ou cor”.
Mariana salientou também que, em um país onde 56% da população se autodeclara negra — mais de 120 milhões, segundo o IBGE —, os impactos da crise climática recaem de maneira desproporcional sobre estas pessoas vulnerabilizadas. “Dados do Censo 2022 mostram que cerca de 73% da população que vive em favelas e periferias urbanas é negra. Além da precariedade habitacional e urbanística, essas populações enfrentam os impactos mais intensos da emergência climática”, afirmou.
Às vésperas da COP30, a assessora trouxe ainda um alerta crucial: “Não é possível avançar sem uma abordagem explicitamente antirracista, capaz de reconhecer que os impactos da crise climática recaem de forma desproporcional sobre populações negras, quilombolas, periféricas e afrodescendentes em geral. Isso implica incluir raça e gênero como critérios estruturantes nos planos de adaptação, assegurar que as comunidades historicamente vulnerabilizadas tenham voz e espaço nos mecanismos de decisão e garantir que os recursos de financiamento internacional cheguem de forma direta e equitativa a esses territórios, com monitoramento robusto para que os compromissos não se esgotem em promessas formais”.
A assessora de Clima defendeu uma concepção ampliada de transição justa. “É preciso incorporar o direito ao trabalho digno para a população afrodescendente, o direito à cidade e à permanência nos territórios, a valorização da economia do cuidado e, sobretudo, a justiça reparatória como eixo estruturante, de modo a redirecionar recursos para as comunidades que historicamente sustentaram o desenvolvimento sem usufruir de seus benefícios. Justiça climática não é favor nem concessão, mas direito inalienável que exige redistribuição de poder, recursos e reconhecimento.”

O protagonismo de Geledés também se deu em outras frentes. Tamires Santana, delegada eleita na conferência livre organizada pelo instituto, destacou a importância de ocupar os espaços de formulação de políticas públicas. “Participar da 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres tem sido uma experiência enriquecedora e desafiadora, sobretudo por estar, após um hiato de dez anos, em um espaço de construção coletiva para discutir políticas públicas com diferentes perfis e particularidades. Apesar do curto tempo de organização e do impacto que isso trouxe para boa parte dos grupos de participantes, o encontro aconteceu — e, mais importante, expôs como nós, mulheres negras, ainda enfrentamos questionamentos de nossas lutas, mostrando que ainda há muito chão a se pisar para a garantia do respeito e avanços, para além dos discursos.”
Tamires reforçou a necessidade de que a diversidade presente na conferência se traduza em práticas concretas. “É simbólico ver mulheres de todos os cantos do Brasil reunidas, mas é urgente que essa diversidade não seja apenas ilustrativa: ela precisa se traduzir em reconhecimento real, em mais acolhimento entre as diferentes vozes de mulheres, sobretudo no que diz respeito às mulheres pretas e também as mulheres com deficiência, e, claro, que toda essa construção possa realmente se transformar em políticas públicas efetivas para nós.”
Na mesa sobre Cultura, Esporte, Comunicação e Mídia, Tamires relatou a defesa da criação de linhas de financiamento para iniciativas promovidas por mulheres em territórios descentralizados, além da valorização e preservação de saberes ancestrais.
Ao final da conferência, Nilza Iraci demonstrou sua expectativa de que a energia política do encontro se transforme em ação. Apesar de criticar a metodologia da atual conferência, ao afirmar que muitas das pautas já foram tratadas em encontros anteriores sem grandes avanços, ela enfatizou a importância de se cobrar resultados. “Espero que os belíssimos discursos da conferência, incluindo o do presidente Lula, venham se concretizar na prática, fazendo valer o esforço dessas quatro mil participantes estarem em Brasília.”
Com a participação incisiva de Geledés, a 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres mostrou mais uma vez que as vozes das mulheres negras permanecem centrais na luta por democracia, igualdade, justiça climática e justiça reparatória no Brasil.