Vulneráveis ao calor

Temperaturas altas merecem planos de prevenção, alerta e apoio à população como enchentes e tempestades

A semana de calor recorde em pleno inverno jogou luz sobre urgência, até aqui, negligenciada, nas palavras certeiras de Renata Libonati, professora no Departamento de Meteorologja da UFRJ, em entrevista à Ana Lucia Azevedo, do GLOBO. Foi das análises mais contundentes e relevantes sobre efeitos da crise climática num país tropical que se vê abençoado por Deus e bonito por natureza. Coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da centenária universidade, ela alertou sobre a necessidade de tratar os episódios de altas temperaturas com a mesma atenção dada a chuvas, secas e deslizamentos. A pesquisadora apresentou o calorão como evento sem o impacto visual de outros desastres, mas igualmente letal.

As ondas de calor, recomendou, merecem planos de prevenção, alerta e apoio à população, nos moldes do que já existe (ou deveria) em relação a tempestades e enchentes. Se a desigualdade brasileira afeta assimetricamente famílias e comunidades, a partir de endereço, nível de renda, acesso a serviços públicos quando chove, é certo intuir que faz o mesmo sob o sol inclemente. Assim, estariam os pobres — e negros e mulheres, por serem maioria na base da pirâmide — mais vulneráveis aos efeitos nocivos dos níveis recordes de temperatura, cada vez mais frequentes.

Ambulante em praia carioca: trabalhadores expostos a calor intenso e prolongado podem ter saúde afetada — Foto: Leo Martins

A professora Renata propôs métrica para suspensão de aulas em escolas sem ar-condicionado e funcionamento 24 horas de shoppings, centros comerciais e culturais refrigerados para abrigar os desalojados pelas ondas de calor. É o caso de apurar a proporção de escolas públicas brasileiras que dispõem de salas climatizadas e se elas estão nas áreas mais afetadas pelo calorão.

A reflexão sobre o que fazer diante da combinação de altas temperaturas e baixa umidade lembrou o enfrentamento à pandemia da Covid-19. Naquele março de 2020, quando a recomendação sanitária era isolamento social, uso de máscara, água, sabão e álcool gel para higienização das mãos, favelas e periferias se levantaram para reivindicar direitos ao poder público. Não haveria como cumprir as medidas, se comunidades sofriam sem rede de água, sem dinheiro para itens de higiene e saúde rapidamente inflacionados, sem possibilidade de distanciamento pela necessidade de manter o trabalho autônomo ou sem carteira assinada.

Dali surgiram iniciativas como o Gabinete de Crise do Complexo do Alemão, o projeto Mães de Favelas da Cufa, a parceria entre Redes da Maré e Fiocruz, a campanha Tem Gente com Fome. Organizações da sociedade civil se mobilizaram para arrecadar recursos, comprar e distribuir alimentos, água e até dinheiro; cobrar das autoridades carros-pipa e políticas de transferência de renda. Esse ativismo ainda existe e dialoga, em maior ou menor grau, com governos nas ações de prevenção contra as tragédias em alagamentos e desmoronamentos em decorrência de chuvas. Podem funcionar também para construir a resiliência ao calor.

De novo, se quatro em dez trabalhadores estão na informalidade e muitas das ocupações se dão em vias públicas, haverá muito sofrimento e adoecimento diante de termômetros marcando 40 graus e sensações térmicas ainda maiores. Poucos no Brasil têm a possibilidade de transformar um dia de calor intenso em lazer à beira-mar. A realidade, principalmente nas favelas e nas zonas Norte e Oeste do Rio, é de ruas sem árvores e sem fontes de hidratação; é de transporte público abarrotado e quente; é de residências mal ventiladas e densamente povoadas; é de contas de luz e água nada baratas.

— Política de enfrentamento às altas temperaturas é uma discussão difícil no Brasil, porque estamos supostamente acostumados ao calor. Nem todos os gestores são sensíveis a essa agenda. Existe um negacionismo climático também aí — diz a arquiteta e urbanista Tainá de Paula, secretária municipal de Meio Ambiente do Rio.

A capital, segundo ela, elaborará um plano para proteger a população e adequar os espaços públicos. Uma ideia é ampliar o volume de recursos para arborização urbana e retomar instalação de chafarizes. Shoppings, museus e grandes estabelecimentos, já usados como abrigo em dias de muita chuva, também poderão integrar o esforço de proteção contra o calor excessivo. O ar-condicionado nos ônibus, por razões de saúde pública, não poderá mais ser adiado. E a população vulnerável terá de ser informada adequadamente sobre como sobreviver a mais essa adversidade.

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