Quando uma escritora negra independente é recorde de lançamento

Já passava das 23h. Quase todas as luzes do shopping Frei Caneca estavam apagadas. Lojas fechadas. Com exceção de uma, no último andar. A Livraria Blooks. A fila que se formou no começo da noite para receber autógrafos permanecia firme e forte. Os últimos leitores só arredaram pé depois de terem seus livros assinados.

Por Ana Squilanti, do Fale Com Elas

Gabriela Pires e Jarid Arraes. Foto: Divulgação.

Exaustas e realizadas, a escritora Jarid Arraes, a ilustradora Gabriela Pires, e a editora Lizandra Magon, da editora Pólen Livros, puderam então comemorar o sucesso que foi o lançamento de “Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis”, nesta última quinta-feira, 01 de junho.

O livro foi o maior lançamento da editora. Foi também recorde de venda da Blooks neste ano, e um dos maiores em sua história. Duzentos e trinta livros foram vendidos, segundo Paulo Costa, supervisor da Livraria.

No Brasil, onde os 72%* dos autores publicados são homens, brancos, e do eixo Rio-SP; onde as personagens mulheres são minoria; onde o protagonismo negro é reduzido a figuras pobres, hora bandidos, hora domésticas, que porventura são assassinados; uma cearense negra publicar um livro sobre mulheres também negras, que marcaram nossa história é mais que um sucesso. É um movimento político, de acordo com Lizandra. Mostra que a sociedade está mais crítica, valorizando novos debates, e que as mudanças da inclusão que aconteceram nos últimos anos, são irreversíveis. “Não vão mais conseguir tirar o protagonismo de quem percebeu que tem importância”, falou.

Prefácio do livro “Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis”

Das heroínas de ontem para as de amanhã

Homens, em maioria brancos, foram sempre relatados como grandes desbravadores, escritores, líderes. E eles foram, de fato. Mas não foram os únicos. Quando a história enaltece a conquista destes, e não conta a de outras protagonistas, as condena ao esquecimento. Ao apagamento. “Porque não crescemos também ouvindo sobre os feitos de mulheres negras? É como se elas nunca tivessem contribuído para a sociedade”, discursa Jarid na abertura. Essas histórias precisam ser contadas.

O livro biografa mulheres de épocas e lutas diferentes. Mulheres que batalharam por liberdade, visibilidade, expressão. Líderes quilombolas, como Tereza de Benguela, a rainha que comandou por duas décadas o Quilombo do Guaritere, no Mato Grosso; Antonieta de Barros, primeira deputada estadual negra do país, por Santa Catarina, e pioneira no combate ao racismo e machismo; e Tia Ciata, baiana radicada no Rio, mãe-de-santo, quituteira e figura essencial na consolidação do samba, tem suas heroicas historias narradas. Heroicas.

Para Jarid, uma heroína (ou herói) é alguém que se vê numa situação de adversidade, e, mesmo sem saber possuir forças ou recursos para lutar contra algo, a enfrenta. Reconhecemos uma heroína pela humanidade que ela tem. Isso gera representatividade. Inspiração. “Por isso essas Heroínas Negras se encaixam tão bem nesse termo. Imagine, escravas que lutaram contra todo um país e sistema, contra a fome e ameaça constantes de tortura e morte, e mesmo assim, deixaram esse legado que a gente toma hoje para continuar essa luta”, disse.

A escritora acredita que boas heroínas conseguem fazer com que nos sintamos um pouco heroína também. Por isso dedica a coletânea às heroínas do presente. Porque nesse exato momento estamos escrevendo a história que será contada daqui a algumas décadas e séculos. E fazemos isso porque sabemos ser possível, porque vimos as heroínas dos passado fazerem.

Foto: Divulgação Blooks

Visibilidade, representatividade e identificação

Lizandra conta que na linha principal de livros adultos da Pólen, a maioria das autorias são de mulheres. Ela almeja o dia em que não vai mais precisar publicar livros como este, porque o assunto já vai estar tão recorrente, que não será preciso indicar que questionamentos estão acontecendo, e se fazem necessários. Enquanto isso, fortalecer e abrir discussões é preciso. A editora deseja ser um estímulo para a reflexão e pensamento. Quanto mais espaço para minorias se posicionarem, melhor.

Para Jarid, representatividade é o que fez a maioria do público nesta noite na Blooks ter se formado de mulheres negras. É o mesmo motivo que a faz enxergar as escritoras Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis como mentoras. É alguém como elas que está ali, e que serve de espelho. “Espero que essas mulheres sintam que cada passo que dou é um passo nosso, coletivo”, falou.

A cordelista acredita que as Heroínas podem beneficiar também as pessoas brancas. Além do combate ao racismo arraigado e velado, há a possibilidade de identificação com pessoas diversas, de diferentes trajetórias. A chance de se conectar a essas histórias, e encontrar nessas heroínas inspiração de coragem, coletividade, e resiliência.
Dá para ser independente

Ao adentrar grandes livrarias, nos deparamos com obras estrangeiras, com propostas e perfis de personagens semelhantes, contadas em países distantes. “As pessoas sentem necessidade de fugir da mesmice do mercado editorial, que parece não entender que literatura e criatividade implicam diversidade, e isso gera interesse”, disse Jarid.

Durante o lançamento, pessoas que passeavam pelo shopping adentraram a livraria para entenderem o que ali acontecia. Diferente da maioria do público, elas não conheciam seu trabalho. E não pouparam elogios. A escritora achou bonito, simbólico. Mostra que é possível romper as barreiras dos nichos sim, se o que se escreve tem verdade.

À frente da Pólen por três anos, Lizandra relata a dificuldade de se destacar no mercado editorial sendo independente, e a importância da união das pequenas editoras. A competição com as grandes, que tem caixa para divulgação e anúncio, e pagam pela exposição de seus livros em lugares estratégicos nas livrarias, acaba por vezes sendo desleal.

Livros de altíssima qualidade acabam não tendo o reconhecimento que mereciam, porque competem com as vendas dos best-sellers, que tem maior visibilidade.

A Blooks é uma das livrarias que apoia autores independentes, eventos e rodas de conversa de interesse sociocultural. O supervisor Paulo relata que é importante levar esse tipo de informação e cultura as pessoas, porque há uma grande demanda. Há uma massa que consome, mas que não encontra em todos os lugares. Para eles é gratificante poder ser esse veículo.

Com o sucesso do último lançamento, Lizandra espera conquistar ainda mais espaços. “Trabalhar com editorial independente por vezes é uma questão de existência. Queremos nos ocupar com livros do mundo que a gente quer incomodar e mudar, há causas e propósitos por detrás disso, mas também queremos o retorno. Queremos e nos empenhamos para que os autores sobrevivam [financeiramente] de sua escrita”, falou.

*Dados do estudo “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990–2004”, de Regina Dalcastagnè.

 

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