Tanto o samba quanto o tango têm em comum uma origem afrodescendente, apesar de enfrentarem tentativas de branqueamento
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Se você vem do Brasil e algum estrangeiro desavisado lhe perguntar qual é o gênero musical mais autêntico do país, a sua resposta, rápida e precisa, com toda a certeza será “o samba” (por sinal, é capaz que o próprio forasteiro já saiba disso). Mas por que o samba parece nos representar assim tão bem? Façamos o exercício inverso.
Quando você pensa na cultura da Argentina, que imagens ou expressões artísticas povoam a sua mente? É quase natural que o tango – e um casal de dançarinos sensualmente bailando ao som melancólico do acordeão – espete na cabeça, ao lado de outros clichês, como filmes de Darín, a tirinha da Mafalda e os pampeiros solitários de Borges.
Seja em solo brasileiro, seja no território de nuestros hermanos, certa musicalidade “genuína” parece conformar, e confirmar, aspectos importantíssimos da identidade nacional. Trata-se de uma construção cultural, com relevantes pitadas de política. De qualquer forma, essas duas manifestações rítmicas, cujo estabelecimento se deu há mais ou menos um século, têm em comum uma vigorosa origem afrodescendente, apesar de enfrentarem tentativas de branqueamento.
Não é à toa que dois homens negros assinem a autoria das primeiras músicas registradas do tango e do samba: respectivamente Rosendo Mendizábal e Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga.
Mas os tanguistas e sambistas não constituem os únicos grupos de musicistas do continente a contar com essa privilegiada ancestralidade. De Cuba ao Uruguai, a América Latina inteira deve a gênese e o desenvolvimento de sua música aos descendentes de africanos que aqui viveram ou vivem. Entre eles, o candombe, a salsa, a habanera e a rumba.
E quem tiver disposição para transpor a barreira física do Río Grande, achará muitas – praticamente exclusivas – impressões digitais de afro-americanos na geração do blues, do jazz, do rock, do pop e da gospel music.
Comecemos do n
osso quintal, antes de olharmos para a grama dos vizinhos. Nestes dias que correm, celebram-se cem anos da composição da música Pelo telefone, que, com o tempo, passou a ser lembrada como o primeiro samba a ganhar o mercado fonográfico. Gravada no começo de 1917 por Baiano e Donga – este último, detentor do direito autoral da letra, após registro na Biblioteca Nacional –, tornou-se imediatamente um sucesso fabuloso, e talvez não houvesse folião carioca daquele Carnaval que não tivesse na ponta da língua os seus versos, que pediam o abandono das mágoas e anunciavam a chegada da alegria.
Reprodução do primeiro samba gravado, Pelo telefone. Por razões técnicas, não havia instrumentos de percussão nas gravações fonográficas dos primeiros sambas. Eles só foram incluídos nos discos a partir de 1929
O hit veio embalado em polêmica. Frequentadores da casa de uma influente mãe-de-santo no centro do Rio de Janeiro, a baiana Hilária Batista de Almeida (conhecida como Tia Ciata), reclamaram parte na criação da música, que não seria filha somente de Donga – que, ao lado de figuras como Pixinguinha, também participava das celebrações promovidas por Tia Ciata.
A reivindicação deles fazia todo o sentido. Segundo a historiadora Fabiana Lopes da Cunha, espaços comunitários em geral liderados por mulheres constituíam o cerne da organização social e cultural de africanos e seus descendentes no Rio daquela época.
Tratava-se de uma população vulnerável às reformas urbanísticas cheias de megalomania que, desde a gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906), buscavam transformar a região central do Rio num reflexo das grandes capitais da Europa, expulsando moradores pobres e negros para os morros circunvizinhos e os subúrbios. Tia Ciata, emigrada de Salvador no século XIX, habitava as imediações da Praça Onze, área que chegou a desfrutar do apelido de Pequena África antes de ser desmantelada pelo trator do “progresso”.
Ela e outras matriarcas baianas associadas ao candomblé costumavam promover festas e rodas musicais que, para muitos estudiosos, são o próprio celeiro do samba urbano moderno, “corroborando assim a tese de que este gênero teve uma origem coletiva e que tinha por finalidade alegrar, acompanhado por palmas e ao som rítmico dos batuques”, como escreve Cunha no livro Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção da nacionalidade.
O pesquisador e compositor Nei Lopes nos lembra em seu Dicionário escolar afro-brasileiro que, antes do século XX, o termo samba era um ‘genérico de várias antigas danças brasileiras de origem africana e da música que acompanha cada uma’ delas.
O vocábulo, provindo do quimbundo semba (em que significa “umbigo”), possuía tanta difusão que já se fazia registrar inclusive em romances do final do século XIX, como o naturalista Bom-Crioulo, do cearense Adolfo Caminha. No texto, publicado em 1895 e que descreve o romance homossexual de um ex-escravo marinheiro, lemos que num certo navio da Marinha brasileira eram frequentes os “sambas à noite, na proa”. Uma alternativa lúdica às péssimas condições a que a tripulação – boa parte, afrodescendente – era submetida nas jornadas diárias.
O fato é que Pelo telefone integra um conjunto de composições que alterariam a paisagem rítmica do Rio naquela conturbada belle époque. Até então, nos carnavais pulava-se ao som de polcas, tangos, marchas. Ao longo dos anos 1920, o advento das rádios e de novas gravadoras ajudou a impulsionar e a moldar o samba carioca como um gênero musical distinto: os instrumentos de percussão, essa evidente herança de sociedades negras, só foram instituídos nos discos a partir de 1929, pelo Bando dos Tangarás, composto por figuras como João de Barro e Noel Rosa.
O samba carioca, além de ir conquistando o público, caiu na graça da intelligentsia modernista, ávida pela descoberta de “raízes genuínas” da cultura brasileira. Sintomático é que Macunaíma, livro de Mario de Andrade cujo protagonista é um mestiço de negro, índio e branco (algo como a “síntese” do que é “ser brasileiro”), tenha sido publicado pouco antes de Casa-grande e senzala, do sociólogo Gilberto Freyre, obra de 1933 fundamental na construção da ideia de uma suposta “democracia racial” no Brasil.
Essa mentalidade se encaixaria como uma luva aos interesses dos poderes políticos que chegaram à Presidência após a Revolução de 1930. Por meio de representações culturais, em especial durante o Estado Novo (1937-1945), as autoridades buscavam transmitir a noção de harmonia racial num país cuja Abolição – canhestra – da escravatura mal completara cinco décadas. Foi assim que “o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade”, relata o antropólogo Hermano Vianna, em O mistério do samba.
“Na representação vitoriosa dos anos 1930, o brasileiro nasce, portanto, onde começa a mestiçagem. A mistura deixou de ser desvantagem para tornar-se elogio, e diversas práticas regionais associadas ao popular – na culinária, na dança, na música, na religião – seriam devidamente desafricanizadas, por assim dizer”, argumentam as historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, em Brasil: uma biografia.
A capoeira, a feijoada, o samba, todos concebidos em território brasileiro no contexto das diásporas africanas, passavam a ser ‘nem brancos nem negros’, signos de uma ‘brasilidade’ racial falsamente simétrica que, no fundo, apenas tentava relativizar suas origens africanas. Será por acaso que nossa ‘embaixatriz do samba’ é uma mulher branca nascida em Portugal?
Tango: um legado africano no Plata
Durante a era colonial, Buenos Aires foi um entreposto de venda de escravizados africanos (especialmente povos bantos, como angolas, congos, benguelas e moçambiques) para várias regiões da América hispânica, entre elas o Peru, a Bolívia e o Chile, além da vizinha Montevidéu. A população negra na cidade que se tornaria a capital da futura Argentina somava números expressivos ao fim do século XVIII, perfazendo metade da dos brancos.
A partir da virada do Oitocentos, do processo de emancipação da Espanha e da consolidação do território nacional, os governos locais puseram em marcha sucessivas políticas racistas com o sentido de reduzir e eliminar a presença de afrodescendentes no país: recrutando-os forçadamente para guerras e até estimulando-os à emigração. Doenças como a febre amarela tamb
ém contribuíram para a diminuição de afro-argentinos no período.
Como não poderia deixar de ser, no entanto, africanos e seus descendentes legaram uma gigantesca herança para a cultura local. O que se considera hoje uma das expressões finas da alma portenha, o tango, tem traços africanos do nome ao ritmo.
Explica-nos a musicóloga Isabelle Leymarie, em seu livro Del tango ao reggae. Músicas negras de América Latina y del Caribe: “Os rituais congos [dos africanos chegados à região] se chamavam candombes (que, segundo certa etimologia, provém do banto ka n’dombele, ‘rezar aos deuses’) ou também tambús ou tangos.” Por sinal, o termo milonga, que define um famoso estilo de canto ao violão muito associado ao tango e aos pampas, igualmente provém de uma língua banto, o quimbundo, e originalmente significa “palavras”, “discussão” ou “lamento”.
Versão dos anos 1940 do primeiro tango registrado enquanto partitura, El entrerriano, de Rosendo Mendizábal. Sua primeira gravação data de 1913
Na transição do século XIX para o XX, Leymarie diz que músicos negros argentinos se tornaram “os primeiros compositores de tango de salão, contribuindo para lhe dar o seu sabor característico”. Entre os quais, o já mencionado Rosendo Mendizábal (autor, em 1897, do primeiro tango registrado em partitura, El entrerriano) e o pianista Alejandro Vilela. “Mais tarde, o pianista e bandoneonista Enrique Maciel e o bandoneonista Ernesto Natividad de la Cruz lhe deram uma fisionomia mais moderna.” Outro nome que se destaca no tango do período é o de Gabino Ezeiza, nascido no bairro negro de San Telmo, em Buenos Aires.
O enorme afluxo de imigrantes brancos trouxe aportes europeus para o tango, que, depois de experimentar uma profícua temporada em Paris na década de 1910, espalhou-se pelo mundo (chegando mesmo ao Brasil). O êxito na Europa tornava o tango bastante mais palatável à elite bonaerense; não tardaria para que esse estilo se transformasse, algo como o samba no Brasil, numa espécie de representação da “identidade argentina” – devidamente embranquecida, é óbvio.
Candombe, habanera, calipso, salsa e muito mais
Na margem oposta do Río de la Plata, o candombe, elaborado por escravizados bantos, segue como um dos gêneros musicais e dançantes mais característicos do Uruguai. Assim como o samba e o tango, tornou-se patrimônio da humanidade reconhecido pela Unesco. Notável pela utilização de três tambores (“repique”, “piano” e “chico”), o candombe se originou em manifestações ritualísticas vinculadas à coroação dos reis congos, organizadas por escravizados em solo americano já no século XVIII.
‘Candombe de mucho palo’, composição de Carlos Barea, é uma das mais famosas canções contemporâneas do candombe uruguaio
Essas celebrações, que fundiam religiões africanas ao catolicismo, agregando-lhes elementos políticos (a tentativa de emular uma realeza africana entre os escravizados), perderam os seus aspectos místicos, mas ainda se conservam musicalmente, sendo bastante populares no Carnaval uruguaio. Em Minas Gerais, no Brasil, o candombe sobrevive em sua dimensão religiosa no Congado, com cerimônias ao longo do calendário.
Martinho da Vila já disse que ‘toda a música das Américas, dançante ou não, tem origem no continente africano’.
Constatamos isso facilmente, de acordo com ele, observando desde a “contagiante música ligeira cubana”, além da habanera (nascida em meados do século XIX e que se alastrou pelo mundo como fogo em palha seca), até o funk e as sonoridades antilhanas, que nos presentearam com o reggae, por exemplo. Os mais recentes calipso e salsa, com seus tambores, são gêneros caribenhos que se espalharam pelo globo no fim do século passado. Sucessos ainda mais próximos de nós, os fenômenos do zouk e do kuduro parecem atestar a nossa permanente vocação latina para as musicalidades de África.