A hóstia cuspida

A mão direita embaixo, a mão esquerda em cima, depois, a mão direita pega a hóstia e leva-a a boca, assim os fiéis participam da eucaristia: “E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim” (Lucas 22:19-20), o sacerdote voltado para os fiéis, com o cálice à altura, vai além: “Este é o cálice da Nova Aliança, no meu sangue derramado em favor de vós.” (Mateus 26;26-29, Marcos 14:22-25, I Coríntios 11:23-26), este é o momento mais alto da missa do dia do Senhor, naquele dia, Demetrius cuspiu a hóstia.

Enviado por Rilvan Batista de Santana via Guest Post para o Portal Geledés

Sentado no último banco da igreja, observava todos os gestos do sacerdote e gravava cada palavra do sacerdote em sua mente, embora se sentisse um peixe fora d água, Demetrius possuía agudeza de espírito, observador, lhe foi fácil chegar até o altar e receber a hóstia.

Com as mãos em gesto de oração, contrito, acompanhou a fila em busca do sacramento, se algum conhecido o visse naquela hora, decerto, diria alguns impropérios pelo embuste ou morreria de rir da pantomima da encenação do herege e ateu Demetrius, mas o astuto e manhoso descendente grego, escolheu uma paróquia à légua de distância de sua comunidade para representação dessa blasfêmia.

Perto do altar, longe de sua vez, sua mente sofreu um repuxão para que não cometesse aquele ato insano, mas a maldade prevaleceu e tomando a hóstia com a mão esquerda e colocando-a na boca com a mão direita, esgueirou-se no meio dos fiéis, refugiou-se num canto da nave e na penumbra da luz, deu uma cusparada no “corpo de Cristo” e voltou para o seu lugar.

Não esperou os ritos finais, os avisos, a bênção do sacerdote, fazer o quê? Tudo tinha saído a contento, conforme desafio que fez ao seu colega da faculdade:

– Aquilo é farinha e água sem fermento! Corpo de Cristo!? Corpo de Cristo!?… – e se engasgava de tanto rir.

Ao sair de igreja, ele ria-se por dentro… Agora, iria fanfarronar sua façanha a Beto, contar-lhe os detalhes, rir de sua cara de espanto e vê-lo aterrorizado da ignomínia, decerto, diria: “Endoideceu Demetrius?…” então, diria: “Deus tenha misericórdia de tua alma irmão de Judas Iscariotes e filho do Tinhoso!”, porém, passado o susto, a bronca, Beto o relevaria, o desculparia, conhecia-lhe a alma e o coração.

O suor lhe encharcava o corpo, Demétrius virava-se na cama de um lado para outro insistente, algo lhe sufocava, as visões apareciam em flashes, não conseguia discernir as imagens, só uma voz rouca lhe chegava aos ouvidos: “Filho de Belzebu! Filho de Belzebu! Filho de Belzebu!…”, não reconhecia aquela voz, não era a voz do seu amigo Beto, tampouco de sua mãe, ela não seria capaz de deixá-lo naquela agonia…

Agora, a voz era mais clara, todavia, a imagem confusa torturava ainda mais a mente de Demétrius, aquela voz doía-lhe aos ouvidos, não aguentava mais, tentou levantar-se, não conseguiu, uma coisa lhe esgoelava, a voz mais estridente gritava: “Satanás! Satanás! Satanás!…”, de repente, de chofre, a imagem veio-lhe nítida, definida, não havia mais dúvida, o padre daquela missa lhe perseguia, era ele, reconheceria aquele filho de gnomo em qualquer lugar, aquela figura baixinha, cabeçudo, nariz adunco, olhos penetrantes, deu-lhe susto e medo ao vê-lo quando entrou naquela igreja e se não tivesse sido o propósito de deixar Beto fulo da vida, talvez não tivesse ousado cuspir a hóstia, pelo medo que o padre lhe causou.

Tentou na aflição do pesadelo esmurrar o padre, quebrar-lhe as fuças, mas o diabo do gnomo era mais ágil, Demetrius perdia o fôlego de tanto tentar, mas em vão, o padre chegava e lhe xingava e desaparecia como por encanto. Dado momento, o padre desapareceu e, aparece-lhe uma hóstia, não a hóstia que cuspiu, mas uma grande hóstia que de tão clara, de tão luz incandescia-lhe a visão, Demetrius levava o braço aos olhos inutilmente, desejava fugir, não conseguia, a luz da hóstia lhe acompanhava como se o cercasse por trás e por frente, como se o espremesse…

O coração parecia que ia explodir, Demetrius arfava cada vez mais forte, no limite da resistência humana, escusava-se pedir socorro a Deus, o seu orgulho de ateu não deixava, sentia, mesmo dormindo, no limiar da consciência, que nada daquilo era verdade, que tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto do inconsciente, quando o seu corpo teve outros repuxões e sacudidelas, o clarão da hóstia tinha fugido, mas uma grande cruz pingando sangue lhe apareceu cada vez mais próxima, cada vez cada vez mais próxima, cada vez mais próxima…

Acordou-se aturdido, com gritos lancinantes, ainda arfando, o suor descendo pelo corpo, os “flashes” vivos em sua mente, de supetão, Demetrius desceu da cama, ajoelhou-se, abençoou-se em nome do “Pai”, do “Filho”, do “Espírito Santo”, e, orou e chorou, chorou e orou, orou e chorou…

 

Autor: Rilvan Batista de Santana Professor aposentado / Membro da Academia de Letras de Itabuna – ALITA

Licença: Creative Commons

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