O Blackface e a questão racial: reflexões sobre um debate na Unicamp

Embora, sejam minorias, há negros hoje nos teatros brasileiros, os negros estão presentes no Instituto de Artes da Unicamp. Então uma pergunta mais desoladora se anuncia: Por que os atores brancos continuam fazendo o papel dos negros?

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

Enviado por Douglas Rodrigues Barros via Guest Post para o Portal Geledés 

O sol de Campinas e seus raios cortantes doíam como farpas agudas no lombo deste que escreve. Apesar do costume ao caos de São Paulo, a fantasia se estabelece pela nossa crença de que haverá um dia em que talvez o trânsito estará menor ou desaparecerá. Ledo engodo.

Tive a alegria e o prazer de participar como palestrante do fantástico evento intitulado O negro dentro e fora dos contextos cênicos. Eis, portanto, o motivo de minha ida até a Universidade Estadual de Campinas, ou Unicamp: fui substituir o meu parceiro intelectual e de luta, Douglas Belchior. Como me chamo Douglas também, a única alteração foi o sobrenome (espero que o leitor entenda a ironia).

Tive a alegria e o prazer de participar como palestrante do fantástico evento intitulado O negro dentro e fora dos contextos cênicos. Eis, portanto, o motivo de minha ida até a Universidade Estadual de Campinas, ou Unicamp: fui substituir o meu parceiro intelectual e de luta, Douglas Belchior. Como me chamo Douglas também, a única alteração foi o sobrenome (espero que o leitor entenda a ironia).

Meu tema era: “Representação e Representatividade: O Negro dentro e fora dos contextos cênicos – A representação imagética expondo como é visto e como é imposta o ser negro na sociedade”. Se por um lado, eu não sou nenhum especialista no teatro, por outro, minha área de interesse foi sempre estética e filosofia da arte, e isso fez todo um meio de campo para que entrássemos no assunto da noite que seria delineado nas constatações da grande ausência de negros nos teatros brasileiros.

Portanto, depois da hora da discussão sobre o que é sujeito moderno, depois de pensarmos juntos como esse sujeito foi apresentado na literatura e no teatro, depois de uma releitura de sobrevoo dos prados que erigiram o conturbado Esclarecimento, chegamos ao clímax da noite; por que os negros são minorias ínfimas no teatro sendo que a composição da sociedade brasileira é majoritariamente formada por negros?

De fundo ressoa uma resposta fundante de nossa formação social cindida racialmente: os negros precisam sobreviver e, obviamente, os investimentos públicos que desenvolvam potencialidades artísticas nesse país são escassos. Fazer arte é coisa de rico. Isso – como já foi abordado num outro artigo meu nesta mesma coluna – leva a população negra à uma situação de disputa no mercado de trabalho, ficando na maioria das vezes em locais desprotegidos de direitos mínimos e alijados da grande produção cultural.

Argumentação pontual e certeira até o surgimento de um aspecto desolador para todas as boas consciências, qual seja: embora, sejam minorias, há negros hoje nos teatros brasileiros, os negros estão presentes no Instituto de Artes da Unicamp. Então uma pergunta mais desoladora se anuncia: Por que os atores brancos continuam fazendo o papel dos negros?

Pressentindo o quanto a questão que, naquele gostoso ambiente, adquiria um favorecimento para ser colocada, custava-me não recordar dos dilemas erguidos pela própria constituição do teatro contemporâneo, em especial os pressupostos conceituais do Teatro do Oprimido. Augusto Boal, esse célebre pensador e artista, fundamenta a questão nos seguintes moldes: “O Teatro do oprimido, não é o teatro para o oprimido: é o teatro dele mesmo”.

Uma das características, a meu ver, centrais no Teatro do Oprimido, que tem quase a mesma idade que a minha, é a intervenção social que possibilita recriar laços de ressignificação social para grupos historicamente vulneráveis e desfavorecidos. Desse modo, a busca se centra na identificação e construção de pontes formativas que possibilitem a elaboração de estratégias que articulem novas formas dos atores encontrarem soluções para os problemas sociais e, também, para os problemas no interior de seus próprios coletivos e companhias.

Tais ações formadoras no interior do Teatro do Oprimido conseguem fazer com que reflitamos nos seguintes termos – e essa foi a ideia mais original, porque óbvia, saída da cachola de uma estudante negra das artes cênicas da Unicamp – : sabemos que antigamente as mulheres não atuavam, certo! Sabemos que isso mudou drasticamente e que hoje, embora ainda existam tais práticas cênicas, os homens não precisam tomar os papeis das mulheres, certo! Então, por qual motivo, os negros não estão nos papéis de negros? E por que quando isso é questionado se levanta uma pronta ojeriza contra a  questão? Ora, isso só pode ter uma razão… (as reticências é porque sei que o leitor saberá completar o raciocínio).

É preciso salientar ainda que a abertura para refletir sobre tais questões, por parte dos atores brancos presentes, favoreceu várias perspectivas. Crises e angústias foram aflorando conforme se constatava que a própria dinâmica das “artes” atreladas a indústria cultural, mantinham de fora a figura do negro. E que isso correspondia a interligação entre a indústria cultural e o modo de produção e reprodução social que no Brasil tem a especificidade da criação de áreas subalternas no mercado com corte explicitamente racial.

A despeito das angústias que se afloravam de maneira cada vez mais crescente – inclusive as minhas próprias – o debate permaneceu animado, acalorado e em grande nível. Minha fala unida a minha efervescência inicial me inibira de olhar para o desgraçado do relógio, e com isso, o debate se estendeu para além do horário me impossibilitando inclusive de voltar para casa.

Foi quando, com as mãos suando, com o olhar aflito, com olhos de ternura sombria, Julieta se expressou demonstrando angústia, tomou a palavra e me perguntou: “eu posso fazer o papel de uma negra? Eu que sou branca e todo nosso coletivo branco?”.

Reforçando a boa angústia e a saudável consciência em crise, pela obviedade da resposta, resolvi não a responder e simplesmente devolvi a pergunta: E agora Julieta com a presença de negros nas artes cênicas que fazer? Negro ou não-Negro – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma… ou pegar em armas contra um mar de angústias?

 

Sobre o Autor:

Mestre em estética e filosofia da arte e atualmente é doutorando em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), além de coordenador político na Uneafro Brasil.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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