Mãe Stella de Oxóssi

Todo mundo tem o seu orixá, até o Papa

Por Fernanda Pompeu em seu blog

Foto: Reprodução/fernandapompeu.com.br

Bem que tentaram, por séculos a fio, aniquilar a religiosidade africana. Durante a escravidão, o catolicismo dos brancos foi um morde e assopra. Depois de suplícios e chibatadas, eram distribuídos terços e sermões. Mesmo após a Abolição, e na maior parte do século 20, o candomblé foi continuamente perseguido. Desqualificado, era chamado de seita ou de idolatria. Discriminado, era caso de polícia. Para soar os atabaques só com permissão do delegado.

Mas esse esforço de etnocídio em nada resultou. Os terreiros de candomblé entram no terceiro milênio vivíssimos. Sendo que alguns deles são verdadeiras escolas de cidadania, onde se praticam a iniciação ao mundo dos orixás e a educação para a vida. Tal exemplo de resistência e de transformação se deve principalmente às ialorixás – mães-de-santo –, responsáveis pela governança das casas de culto e pela orientação espiritual de filhos e filhas de santo.

Entre elas, com merecida reverência, está Mãe Stella de Oxóssi. Nascida em Salvador, Bahia. Aliás, três foram os seus nascimentos. O primeiro, em 1925, dentro de uma família de classe média, com o nome de Maria Stella de Azevedo Santos. O segundo, aos 13 anos, quando foi iniciada no candomblé pela lendária Mãe Senhora. O terceiro ocorreu, em 1976, quando os búzios decidiram que ela se tornaria ialorixá. Fui escolhida pelos orixás, vivo em função deles. Sou uma religiosa.

O orixá de Mãe Stella é Oxóssi, o caçador. O terreiro, onde para entrar é preciso pedir licença a ela, é o Ilê Axé Opô Afonjá. Ele é um dos maiores e mais prestigiados do Brasil. Fundado em 1910 por Mãe Aninha, foi tombado pelo Ministério da Cultura, graças aos esforços de Mãe Stella. Ou seja, trata-se de patrimônio cultural-religioso dos brasileiros.

Justiça seja feita, o terreiro não é patrimônio exclusivo dos brasileiros. Pessoas de várias nacionalidades pedem licença à Mãe Stella para se iniciarem no candomblé. Ela sabe que na opinião e no sentimento dos orixás não existem desigualdades de raça, etnia, classe social, gênero. Segundo eles, todo mundo é igual para baixo e para cima do umbigo. Ela também sabe que no dia a dia da sociedade brasileira as igualdades são uma piada.

Mesmo em Salvador, cidade com 80% de população negra, a hegemonia econômica e política é dos brancos. Basta um passeio pela cidade para perceber que algo está errado. As músicas, os batuques, os corpos, a culinária, o swing são negros. Os lucros dos negócios, as caixas-registradoras das lojas, os melhores endereços, as escolas mais eficientes, os bons empregos são, na sua maioria, da minoria branca.

Mãe Stella entende que está mais do que na hora de os negros cobrarem pelo seu valor, começando por exigir educação de qualidade e demais capitais de cidadania. Também sabe que é a hora exata de a população negra abandonar os folclorismos e os estereótipos da “baianidade” em troca da real apropriação da cultura afro-brasileira-baiana.

Além de líder espiritual, é líder política da comunidade. Não titubeou em abrir as portas do Terreiro para abrigar seminários preparatórios da Conferência Mundial contra o Racismo da ONU (Durban, 2001). Também não se furta a participar de congressos, seminários, reuniões internacionais quando o assunto é cultura e religiosidade afros.

Ela afirma que o candomblé sempre foi um movimento em prol do cidadão negro. Candomblé e negritude se alimentam um ao outro e dão, entre os frutos, boa autoestima e horizontes. No Ilê Axé Opô Afonjá, funciona uma escola de ensino fundamental para crianças da comunidade, onde o iorubá é idioma obrigatório. Funciona um museu, onde a história dos orixás é contada em toda sua complexidade. Também há oficinas de artesanatos para geração de renda, negócio tocado pelas famílias pobres que moram no terreiro.

A mais fiel imagem para descrever essa ialorixá é a do bambu – firme e flexível ao mesmo tempo. Sou flexível, porque tenho que ser firme na defesa de nossas tradições. Ela pediu emprestados o arco e a flecha de Oxóssi e foi desbravando as veredas. Hoje Mãe Stella estampa a síntese entre renúncia e determinação. Para assumir as responsabilidades de líder religiosa deixou a enfermagem e desfez um casamento. Nos desafios da vida, a pessoa entra inteira ou não entra.

Mãe Stella de Oxóssi é mantenedora do candomblé de pura cepa. Sem mistura. Sem concessões. Ela compreende que o sincretismo foi necessário para enfrentar a perseguição do catolicismo aos cultos africanos. Foi uma maneira de camuflar os orixás sob os mantos dos santos. Mas isso é passado.

A autora do livro Meu Tempo é Agora (1993), e doutora honoris causa da Universidade Federal da Bahia, entre outros títulos, gosta de dizer em alto e bom som: Iansã não é Santa Bárbara, Oxum não é Nossa Senhora da Conceição. Para ela, manter vivas a tradição e a especificidade de cada religião é o autêntico ecumenismo. O resto, incluindo a famosa fitinha do Senhor do Bonfim, é vitrine para turista ver.

Brinde

+ sobre o tema

Fome extrema aumenta, e mundo fracassa em erradicar crise até 2030

Com 281,6 milhões de pessoas sobrevivendo em uma situação...

Presidente de Portugal diz que país tem que ‘pagar custos’ de escravidão e crimes coloniais

O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, disse na...

O futuro de Brasília: ministra Vera Lúcia luta por uma capital mais inclusiva

Segunda mulher negra a ser empossada como ministra na...

Desigualdade ambiental em São Paulo: direito ao verde não é para todos

O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz...

para lembrar

Redução da maioridade penal no (filho) dos outros é refresco

A questão sobre a redução da maioridade penal é,...

Clamor por candidatura negra não se restringe a ‘troca de cor’, explica Sílvio Humberto

Vereador em seu segundo mandato, Sílvio Humberto (PSB) tentou...

O primeiro Dia Internacional da Mulher do governo Dilma

Por: Fátima Oliveira   Será inesquecível? Depende. Pense na manchete: "Dilma anunciará...

Foi a mobilização intensa da sociedade que manteve Brazão na prisão

Poucos episódios escancararam tanto a política fluminense quanto a votação na Câmara dos Deputados que selou a permanência na prisão de Chiquinho Brazão por suspeita do...

MG lidera novamente a ‘lista suja’ do trabalho análogo à escravidão

Minas Gerais lidera o ranking de empregadores inseridos na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A relação, atualizada na última sexta-feira...

Conselho de direitos humanos aciona ONU por aumento de movimentos neonazistas no Brasil

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, acionou a ONU (Organização das Nações Unidas) para fazer um alerta...
-+=