Meghan Markle: Negra? Branca? O limbo sobre sua identidade racial

A colunista Stephanie Ribeiro escreve sobre a identidade racial de Meghan Markle: “Mesmo com cabelos alisados e longos, ela nunca será uma mulher branca”

Por STEPHANIE RIBEIRO, da Revista Marie Claire

Meghan Markle durante evento beneficente no aniversário de 70 anos do príncipe Charles (Foto: Getty Images)

 

Acredito que o casamento real tenha sido o assunto mais comentado deste mês. E dentro do assunto do casamento, o foco foi a noiva: a norte-americana Meghan Marklefeminista, divorciada, que está sendo apontada como o símbolo da busca por renovação da coroa britânica. Meghan chama a atenção por todos esses fatores, e por se colocar como uma pessoa birracialMas afinal, o que é uma pessoa birracial _por mais que, pela nomenclatura, fique claro que se trata de duas raças.

Raça não parece um conceito tão esclarecido para a maioria dos brasileiros. O que é raça, afinal? É um conjunto de discursos sobre as origens de um grupo, que contém termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas. Digo discurso porque a ideia de raça estabelecida pela biologia (a partir do caráter genético e biológico), ou seja, enquanto categoria científica, foi abandonada há décadas pela ciência, decorrente dos horrores sociais e políticos causados na 2ª Guerra Mundial. Mas, invariavelmente, é um discurso de classificação e pertencimento que não apenas abrange uma origem comum, como pode abarcar um destino comum. E é por ser um discurso de classificação que utilizamos, enquanto uma categoria nativa (que está no imaginário das pessoas), para entender como se dá o racismo, ou seja, a hierarquização desses discursos que atribuem valores morais a traços fenotípicos e genotípicos de grupos humanos. O racismo, como ideologia de superioridade de um grupo sobre outros, dá sentido de origem e destino a esses grupos fenotípicos a partir de um viés apenas, geralmente o viés de quem é colocado como superior nessa hierarquia.

Já o termo birracial é uma categoria nativa norte-americana de classificação racial num contexto em que raça é pautada em origem. Isso porque, nos Estados Unidos, raça possui valor classificatório, ou seja, todas as pessoas precisam ter uma raça pois é esse pertencimento que regula boa parte das interações sociais, pautadas na origem e unidade biológica e cultural. Essa origem, portanto, faz com que uma pessoa que seja fruto de uma união de pessoas de raças diferentes seja classificada como “birracial”, pois ela advém (origem) de duas ou mais raças.

No caso do Brasil, raça é uma categoria conectada a cor da pele, ou seja, a marca carregada no fenótipo diretamente percebido e performando pelos sujeitos. Por isso, no caso nacional, temos o termo MESTIÇO, e não birracial. E é possível entender que na determinação do IBGE para PARDO venha como uma tentativa de nomear e determinar sujeitos que frutos do processo de mestiçagem tem sua identidade racial num “limbo”.

Meghan Markle e príncipe Harry: a norte-americana afirma ser birracional por ter pai branco e mãe afro-americana (Foto: Getty Images)

Uso a palavra limbo, pois, mesmo que entre os mestiços brasileiros exista aqueles que facilmente são identificados socialmente como brancos _ou aqueles identificados como negros_, existe aqueles parecidos com Meghan que pairam no meio do caminho, ora sendo negro demais para ser considerado branco, ora sendo branco demais para ser considerado negro. Nesse limbo, podemos encontrar desde pessoas que se entendem e são entendidas como negras de pele clara, assim como pessoas que preferem sequer se determinar. O texto da filósofa e feminista Sueli CarneiroNegros de Pele Clara, trás questionamentos sobre o fato de que brancos têm múltiplas características, algo que não é considerado quando pensamos em negros. Para ela, se considera a diversidade na branquitude, mas não se considera a mesma diversidade para negritude. Logo, quando pensamos um processo emancipatório para sujeitos negros, temos que compreender que se tornar indivíduo passa pela aceitação coletiva das diferenças de narrativas, trajetórias e, claro, características físicas de indivíduos negros.

Só que isso não pode desconsiderar que, por mais que se diga politicamente que cada um deve se determinar, é fato que a identidade racial não pode ser vista como algo individual. Ela está interligada ao outro. Então, de fato, existem negros de pele mais clara, e existem pessoas usando essa designação para reivindicar uma negritude como sua identidade racial para se favorecer em alguns sistemas como o acesso a cotas e ao protagonismo em movimentos sociais. Logo, é preciso debater esse assunto, afinal, nem toda pessoa de pele bronzeada é negra, nem toda pessoa de cabelo cacheado armado é negra e nem toda pessoa, inclusive com parentes negros, será lida como negra no Brasil. E precisamos tomar o Brasil como ponto de partida, afinal, identidade racial varia para cada contexto.

Por isso no caso nacional, é fato que forçar negritude em qualquer pessoa não é positivo, assim como apagar a identidade racial de negros de pele clara não é fortalecedor, pois ambas as ações podem apagar identidades divergentes do classificado como padrão, tanto para ser negro, quanto para ser branco. Compreendo que, por mais que pardo seja um termo questionado pelo próprio movimento negro (pardo é papel), não resolve todas as questões que pairam na determinação racial. Pardo, hoje, engloba diversos mestiços, inclusive alguns que não são frutos da mestiçagem com negros, categoria que somada a pretos confirma os que são entendidos como negros. É impossível falar de raça, racismo e identidade sem avançarmos no debate sobre esse termo e sobre o que de fato ele significa.

É fato que, por muito tempo, se entendeu que era importante a participação de todo afrodescendente dentro do próprio movimento negro, quando passou a existir cotas em universidades, cotas em concursos públicos, se criou uma questão em cima de quem tem acesso a isso e o grande questionamento: Quem é negro? Pessoas que representam uma ambiguidade racial, mas não são entendidas como evidentemente negras, agora se tornaram pontos debates. Aparentemente Meghan é um exemplo do avanço do debate sobre esse “não-lugar” quando se determinou publicamente como birracial e não avançou nas definições sobre esse assunto. Por isso, Meghan vem sem dúvidas incomodando alguns negros no mundo todo. No canal de YouTube The Grapevine, a discussão entre negros distintos sobre Meghan Markle exaltou os ânimos. Para alguns, ela não era negra, para outros, o fato de não se determinar negra já era sinônimo de que não se importava com negros _algo ofensivo. Mesmo que seu casamento tenha tido representatividade negra, não se determinar para Meghan pode ser uma defesa, um medo ou uma decisão política. Mas é impossível não falar de raça, identidade e, claro, de nossas origens na atual conjuntura em que esse debate estampa as grandes mídias nacionais e internacionais, então, ficar de alguma forma “em cima do muro” pode significar levar tiros dos dois lados.

Como afirmei, no entanto, para alguns sujeitos, mesmo aqueles identificados facilmente como negros, determinar uma identidade não é tão simples assim. Para debater isso, trago como exemplo o filme Barry, que retrata a história de Barack Obama, primeiro negro a se tornar presidente dos Estados Unidos, filho de uma mulher branca e de um homem negro. Em determinada diálogo do filme, Obama diz a mãe que toda vez na aula sentia um peso em ter que falar por todos os negros, ao mesmo tempo que sentia que nas reuniões de alunos negros, aquele também não “era seu lugar”, fazendo com que deixasse de participar delas.  Nesse filme, é possível ver como ser birracial para Obama lhe colocou num “não-lugar”, e como a maturidade veio com o enfrentamento disso e da compreensão de que seria necessário entender que nossas identidades não são prontas, elas são construídas.

Obama não deixou nunca de ser um homem negro, mas ele teve que determinar que homem negro iria ser. E talvez não exista modelos prontos sobre negritude. Ser negro não é um modelo pronto, estático, também não representa toda a nossa subjetividade. Ser negro nos define num contexto racista, mas não pode ser tomado como nossa única identidade. Afinal, quem definiu nos moldes estéticos o que era ser negro, foram os sujeitos brancos, a partir de sua visão racista e sem considerar a multiplicidades de nossa identidade. Mas, mesmo confuso, para mim é muito claro que Meghan pode querer não se dizer negra, só que mesmo com cabelos lisos e longos e não mais os cachos possíveis de serem vistos em seus vídeos quando criança, ela nunca será uma mulher branca.

 

Leia Também: 

Negros de pele clara por Sueli Carneiro

+ sobre o tema

Feministas analisam PLC da Guarda Compartilhada aprovada no Senado

A atual legislação brasileira diz, sobre a guarda das...

Vera Verônika se junta a Ellen Oléria em um tributo a mulheres negras

Música 'Soul negra, soul livre!' também tem participação da...

Gordofobia: O grande problema é o seu preconceito

Hoje eu acordei com um grande “problema”… Sou estudante,...

para lembrar

Lei que permite o aborto entra em vigor no Uruguai

As mulheres uruguaias e as estrangeiras com mais de...

Jovem é assassinada pelo ex depois de mudar de cidade

A vítima havia se separada por conta de ter...

Opositores e defensores do casamento gay tomam as ruas de Paris

Milhares de defensores da legislação se reuniram na praça...
spot_imgspot_img

Universidade é condenada por não alterar nome de aluna trans

A utilização do nome antigo de uma mulher trans fere diretamente seus direitos de personalidade, já que nega a maneira como ela se identifica,...

O vídeo premiado na Mostra Audiovisual Entre(vivências) Negras, que conta a história da sambista Vó Maria, é destaque do mês no Museu da Pessoa

Vó Maria, cantora e compositora, conta em vídeo um pouco sobre o início de sua vida no samba, onde foi muito feliz. A Mostra conta...

Nath Finanças entra para lista dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo

A empresária e influencer Nathalia Rodrigues de Oliveira, a Nath Finanças, foi eleita uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo pela organização...
-+=