Porque eu, mulher negra, não entro em relacionamento aberto

Há anos penso sobre isso depois de vários “convites” de homens casados ou em relações estáveis. O ultimo foi de um homem negro, cuja relação com uma mulher branca era “aberta” e segundo ele, era melhor colocar as coisas de forma clara desde o inicio. Apreciei a sinceridade, mas recuei. Depois fui “ruminar” meus sentimentos. Eu me senti ofendida, mais uma vez e decidi escrever sobre isso para dar nomes aos meus sentimentos e aos incômodos com relação a esse tipo de relação.

Também revivi uma outra situação anos atrás onde um ex namorado, já casado, insistiu em “me levar pra cama”, nas suas palavras algo “leve”, sem compromisso.  Recusei a tal leveza  e o questionei se seria vivida também pela esposa. Ele não gostou. Me achou moralista. Não é uma questão moral. Quem me conhece sabe que busco desconstruir em mim primeiramente todas essas camadas de “tradição e bons costumes” que nos oprimem mais que libertam.  Meus sentimentos, minhas emoções e meus relacionamentos são geopolíticos. O que isso quer dizer? Quer dizer que toda vez que recebo um “convite” desses, algo em mim evoca a historia, a minha e aquela social. A mulher negra, desde a sociedade colonial foi preterida, usada sexualmente,  a ela foi negado o direito de amar e ser amada, de seguir livre e fazer parte dos sonhos de alguém (já escrevi sobre isso em outra ocasião). A mulher negra “amante”, “boa de cama”, “boa pra comer”, “reserva”, “segunda opção” , “não pra casar” ainda prevalece no imaginário social e nas relações amorosas. Quando um homem, negro ou branco diz: “Eu tenho um relacionamento aberto e por isso posso me ‘relacionar’ com você dentro dos meus moldes, do meu tempo e daquilo que tenho para lhe oferecer…”, ele está me devolvendo para o mesmo lugar de sempre. Não posso esperar nada, não posso exigir nada dele. É cômodo, né? Sό que pra ele, não pra mim.

Eu tenho outros sonhos e esses também são políticos. Alias, tudo em mim é político.  Talvez para uma mulher branca a questão não  evoca a historia e o seu lugar social no mundo, talvez sua emoções são estejam perpassadas por essa realidade.  Talvez entrar num relacionamento aberto, para ela, não desperte feridas históricas, sociais e culturais. Porque as feridas também são históricas, diga-se de passagem.

Eu quero mãos dados, eu quero abraço publico, eu não quero viver escondida e nem me esconder de ninguém. O lugar de “amante” nunca me coube, eu extrapolo e gosto de expandir-me na vida de alguém. Se não for assim não será. Essa é uma postura que adoto e busco me manter fiel.

Que mulher já não ouviu o discurso do tipo: “com a minha esposa não dá mais, estamos juntos por causa dos filhos, nem dormir juntos estamos mais”. Oh, dό!

Se a mulher do cara é branca, eu vou entrar na vida dele como a amante negra para a cama enquanto as contas, o afeto, ele vive com ela? Se a mulher dele é negra eu vou mais uma vez tirar dela o que as negras nunca tiveram?  O motel que um cara gastaria comigo é o dinheiro de uma roupa , de um batom ou de um jantar que ele poderia gastar com aquela que està ali, no dia a dia, se desgastando, enquanto ele procura “aliviar” as tensões da sua vida e fugindo de suas responsabilidades. E os marmanjos quase terceira idade?

Tem um monte de homens envelhecendo ou que já chegaram lá que procuram recuperar aquele fogo que lhes devolvem a juventude em mulheres mais novas, até meninas. Na minha casa dos 20 anos recebi vários convites desses caras que olham Brad Pitt ou George Clooney  e se acham iguais. Alguns deles se matam nas academias para disputar com os jovenzinhos essa “caça” doentia  por “novinhas”.  A mulher que envelheceu junto está lá, segurando as pontas, cuidando de filhos e até netos e  os caras não se enxergam.

Não facilito a vida dos homens. Isso também é político em mim. Não aceito que decidam meu lugar. Não compactuo com o sofrimento e a labuta da grande maioria das mulheres desse paίs que vive tripla jornada de trabalho. Acho que nenhum sexo vale a pena. E não me digam que os homens conseguem conciliar bem dois “amores” ou três, sem prejudicar ninguém.

Desculpe, baby, mas comigo não, quero muito mais do que você tem para oferecer. Relacionamento comigo de aberto, sό se for para o publico ver.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Uma nota sobre a arte de arranhar a vida entre os dentes

“A noite está tépida. O céu já está salpicado...

De uma mana preta

De uma mana preta! Mulher,Mulher mãeMulher filhaMulher netaMulher periféricaMulher duraMulher...

Um sorriso negro traz felicidade

E o meu medo maior é o espelho se...

para lembrar

Mercados de exclusão: racismo e sexismo em propagandas de alimento infantil no século XIX

O estabelecimento da industrialização provocou mudanças profundas nas sociedades...

O feminismo negro desempenha um papel político ne reeducação brasileira

RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar a especificidade...

A filha da empregada

Naquele dia de chuva, para não chegar atrasada, acordei...

Mulheres e os “mecanismos de enfrentamento á crise”

Mulheres são linha de frente nos contextos catastróficos sociais...

Encontro das águas: precisamos falar sobre afetividade

O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não...

Minha cor chega primeiro. Reflexões sobre a experiência de ser uma mulher negra

Desde o momento do meu nascimento até meus derradeiros suspiros, estarei sozinha. De fato, a experiência de viver é solitária, não há ninguém além...

Ancestralidade e feminismo: de onde vem a prática feminista que você exerce?

Provocada por uma professora do mestrado – obrigada por isso Carla Cristina! –, refleti acerca de minha concepção de feminismo a partir de uma...
-+=