Escritores brasilienses ressignificam o legado de Cruz e Sousa

São nomes que possuem importância na literatura negra do Distrito Federal

Por Vinícius Veloso, do Correio Braziliense

Imagem: Reprodução/Correio Braziliense

Carregada de uma simbologia marcante e própria, a literatura negra é de uma riqueza única por contar com autores que escrevem sobre histórias e vivências reais. Preconceito, resistência, visibilidade, pertencimento, racismo, escravidão e tantos outros temas que estão entranhados na evolução do negro perante a sociedade são utilizados nas produções literárias de escritores negros como Jorge Amâncio, Rêgo Júnior, Cristiane Sobral e Sérgio Souza.

São nomes que possuem importância na literatura negra do Distrito Federal. Mais do que isso, os quatro utilizam o poema e a poesia como forma de empoderamento. “De um tempo pra cá, a partir de meados do século passado, a literatura passa pela marginalização da poesia. As editoras não editam produções de poetas, o que agrava e aumenta a invisibilidade do estilo. Ser poeta é ser marginalizado na literatura. Sendo negro, a dificuldade é ainda maior”, conta Jorge Amâncio.

Mesmo assim, os autores lutam para publicar as obras e expressar toda a negritude presente nos versos escritos com uma veracidade difícil de se encontrar em outros estilos de literatura. “A poesia é uma pluralidade de possibilidades. É dar voz para aqueles que não possuem. Nós, negros, vivemos reinventando nosso lugar na sociedade, e a literatura negra é uma porta aberta para esse autoconhecimento”, comenta Sérgio Souza.

Em uma trajetória com supremacia branca na formação de escritores, muito por conta da condição financeira e da hegemonia que foi criada no território brasileiro, há de se ressaltar nomes como Cruz e Sousa (anos 1800) e Carolina de Jesus (anos 1900), que produziram muito sobre a condição de submissão em que os negros se encontravam. Entretanto, atualmente, sem deixar as origens de lado, o desafio é de ressignificar a temática acerca desta classe racial.

“Os escravizados sempre são lembrados com uma visão depreciativa, mas o negro, em condições mais adversas, sempre soube ser resiliente e inteligente. O conhecimento não estava impresso em páginas. O saber negro veio com a tradição oral. É exatamente essa resistência através do saber que utilizamos hoje para escrever poemas que gritam contra esse sistema, que a cada dia está devorando os espaços, os guetos e as quebradas onde se trabalha arte e cultura preta”, explica Rêgo Júnior.

A luta e a persistência por uma divulgação e reconhecimento das produções negras ainda se fazem presentes no atual contexto. Poetas negros do presente, como Cristiane Sobral, buscam explorar a questão de maneira motivacional — provando que existe produção negra, apesar de todo o preconceito e racismo — e realçar a importância dos que vieram antes. “A marca da literatura não é o estereótipo. É a produção estética literária negra. É contar as histórias de amor, de vitórias, de superação, de humanidades e de conquistas da gente negra brasileira. Estamos além dos maniqueísmos de mal e bem. A experiência de ser negro e brasileiro é tão diversa e não contempla protocolos únicos.”

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Entrevista / Zilma Gesser – professora da UFSC e autora do livro Negro

Cruz e Sousa revisitado

Um dos mais importantes escritores da literatura brasileira, Cruz e Sousa é conhecido por ser o precursor do movimento simbolista no Brasil, iniciado no século 19 com as publicações da prosa Missal e do poema Broquéis.

Cruz e Sousa era filho de escravos alforriados e foi educado sobre os padrões do ex-patrão. Conviveu durante boa parte da vida em um universo de pessoas brancas de alto padrão, fugindo da realidade da maioria dos negros do período. Escrevia sobre a escravidão e a marginalização.

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O escritor tem um lugar especial na história por ser um poeta negro que conseguiu expor a temática da negritude, em um período no qual a Lei Áurea acabara de ser sancionada. Foi responsável por trazer visibilidade e representatividade para a questão racial naquele momento abolicionista — mas também preconceituoso.

Nascido na região que hoje corresponde à Florianópolis (SC), o autor tornou-se tema de estudo da professora Zilma Gesser da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que publicou um livro chamado Negro, com uma coletânea de poesias, prosas e ilustrações de Cruz e Sousa. Em entrevista ao Correio, a autora falou sobre o escritor e o processo criativo para construir a obra.

Qual foi a sua motivação para realizar essa pesquisa/livro?

A idealização da pesquisa foi do poeta e professor, colega de meu Departamento de Ensino de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina, Alcides Buss. Há muitas abordagens críticas destacando questões relacionadas ao tema como: reflexos da origem africana de Cruz e Sousa em sua obra; o Simbolismo como desejo de ascensão social; a busca de um clareamento pelo viés da estética simbolista, dentre muitos outros. Foi cognominado também: Cisne Negro, Dante Negro, Negro de Ouro, Laocoonte Negro e, muito comumente, o Poeta Negro. Existem muitos estudos e muita crítica sobre a temática, mas não existia uma compilação que reunisse todos os textos de Cruz e Sousa que tratam da negritude. Então, essa antologia surgiu com esse propósito.

Como os poemas do autor se refletem no atual cenário do Brasil?

Os poemas de Cruz e Sousa, que fazem parte da antologia Negro, embora datados e fazendo referência ao contexto específico da época da pré-abolição da escravatura no Brasil, podem ser lidos, ainda hoje, como um grito em defesa de sua raça. A pesquisa traz como norte a palavra “negritude”, que é tomada na acepção cunhada pelo poeta senegalês Leopold Senghor: “Ideologia que se caracteriza pela busca e revalorização das raízes culturais da raça negra, bem como pela reação à opressão colonialista na África”. Assim, podemos, notadamente, destacar a intensidade da expressão de seus textos abolicionistas. Mais tarde, considerado o introdutor do Simbolismo no Brasil e figurando ao lado de nomes como os dos escritores franceses Baudelaire e Mallarmé, como um dos maiores simbolistas do mundo, Cruz e Sousa garantiu a sua permanência no panteão literário. É imortal da Academia Catarinense de Letras, patrono da cadeira número 15.

Qual a importância de perpetuaro legado de Cruz e Sousa?

Colocar Cruz e Sousa em debate é dar visibilidade para o poeta de maior expressão da literatura catarinense e um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. É uma dívida que se paga a Cruz e Sousa, que precisou, em 1889, transferir-se para o Rio de Janeiro, em busca de inserção literária. A cidade de Nossa Senhora do Desterro, de então, não lhe ofereceu espaço para desenvolver sua atividade como escritor.

O Simbolismo e a literatura negra são características fortes do autor. Como ele trabalhava isso?

O maior investimento na produção literária de Cruz e Sousa deu-se no aprimoramento dos versos que lhe garantiram o título de um dos maiores poetas simbolistas de todos os tempos. A maior parte dos textos que tratam da negritude diferencia-se desta produção, uma vez que não estão preocupados com o alinhamento à estética em voga, mas a um conteúdo comprometido com sua raça, em defesa de seus irmãos de sangue. Os textos que evocam a temática da negritude configuram-se no que há de mais identitário da essência do poeta, evocando o filho de escravos libertos, o menino negro educado por brancos. Cruz e Sousa falou de negros em sua obra; falou de brancos; falou de seres humanos e, acima de tudo, falou de si próprio como negro.

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