Quem são as juristas que estão na direção do Instituto de Defesa da População Negra, que oferece assistência jurídica gratuita para promover a equidade racial no Brasil

Enviado por / FonteO Globo, por Lívia Breves

No dia 14 de outubro de 2014, a então estudante de Direito da UFF e estagiária na Defensoria Pública do Rio de Janeiro Juliana Sanches entrou pela primeira vez em uma prisão. A imagem das celas de Bangu II lotadas de internos pretos nunca saiu de sua cabeça mas fez com que sua trajetória tomasse um foco bem definido: lutar por aquelas pessoas. “A prisão é seletiva. Quero desencarcerar os negros”, afirma ela, hoje com 29 anos e um extenso currículo focado em antirracismo e abolicionismo penal.

Juliana Sanches é uma das três mulheres que integram o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN): “A maior parte dos negros está presa por crimes de baixo potencial ofensivo. São casos em que deveriam ocorrer penas alternativas, previstas legalmente no Código Penal, mas o sistema utiliza a pena privativa como regra” Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Juliana é uma das três mulheres que integram o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), lançado no último dia 14, em um evento on-line que teve a participação de representantes de diversas instituições e entidades de Direitos Humanos com atuação no combate ao racismo e seus desdobramentos, tais como a violência institucional. Com as juristas Ana Paula Freitas e Beatriz Cardozo, Juliana forma o trio feminino que coordena o instituto, que tem ainda os advogados Joel Luiz Costa e Djefferson Amadeus e o jornalista Ismael dos Anjos em seu núcleo. “Acho significativo a composição da diretoria e do instituto ter essa paridade de gênero e com mulheres ocupando cargos relevantes. Isso é fundamental”, comenta Juliana, que é filha de um policial militar. “Sempre vi os dois lados da situação, por causa do trabalho do meu pai.”

As advogadas Juliana Sanches e Beatriz Cardozo fazem parte da direção do IDPN Foto: Leo Martins / Agência O Globo

O foco do projeto é oferecer assistência jurídica qualificada para promover a equidade racial no Brasil. Os dados brasileiros são alarmantes. Em uma ponta, está a baixa representatividade de advogados pretos em grandes escritórios (apenas 1%); na outra, a enorme quantidade de negros encarcerados (66% são negros e pardos, de acordo com levantamento da Departamento Penitenciário Nacional do ano passado). Para completar, a cada cem pessoas assassinadas no Brasil, 75 são negras. “Queremos oferecer uma defesa de qualidade para quem não pode pagar. Já trabalhei tanto na Defensoria Pública quanto em escritórios renomados. Agora, quero juntar as duas experiências e trabalhar para a população preta”, conta Juliana, destacando que a maior parte dos negros está presa por crimes de baixo potencial ofensivo. “São casos em que deveriam ocorrer penas alternativas, previstas legalmente no Código Penal, mas o sistema utiliza a pena privativa como regra.”

A defensora pública Lívia Casseres, coordenadora do novo núcleo de igualdade racial da instituição, a Promoção da Equidade Racial (COOPERA), ressalta a importância do instituto e destaca ainda o quão fundamental é pensar na colaboração entre os dois órgãos. “O grupo forma uma juventude maravilhosa que tem construído uma nova geração de juristas. O que o IDPN coloca agora é uma aliança dentro dessa lógica. Uma parceria entre a assistência jurídica estatal e a assistência popular, construída pela base que vive a experiência do racismo. Vamos caminhar juntos, lado a lado”, declarou Lívia durante o lançamento do instituto.

Ana Paula Freitas atuou na defesa de Preta Ferreira, líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de São Paulo e nos casos do Massacre de Paraisópolis, dos quatro brigadistas voluntários de Alter do Chão: “Busco emancipar o meu povo a partir da perspectiva jurídica” Foto: Divulgação

A mineira Ana Paula, de 34 anos, lembra até hoje do trajeto de sua casa até a escola, em que passava em frente a um presídio. Ela cresceu em Ribeirão das Neves, cidade periférica que tem a maior concentração de unidades prisionais de Minas Gerais. Conviver em uma região carente fez com que ela virasse uma menina inconformada. “Cresci sendo mulher negra, periférica e pobre. Minha mãe era faxineira e meu pai tinha uma loja de lanches. Sei o que é não ter assistência das políticas públicas. Fui a única da família a chegar ao ensino superior. E tardiamente: entrei na faculdade aos 25 anos, com financiamento do Fies”, lembra ela, que se formou em 2016 e hoje é referência em programas focados em ações para garantir a liberdade e os direitos individuais em pro bono.“Hoje sou uma empreendedora social jurídica. Mas já estive muitas vezes em delegacia e várias vezes fui confundida com as partes envolvidas. Muito precisa mudar para existir equidade racial”, considera Ana Paula, cofundadora do IDPN.

Recentemente, ela atuou na defesa de Preta Ferreira, líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de São Paulo e nos casos do Massacre de Paraisópolis, dos quatro brigadistas voluntários de Alter do Chão. “Busco emancipar o meu povo a partir da perspectiva jurídica”, diz.

O instituto pretende fazer valer os Artigos 3º e 5º da Constituição, que garantem que todos sejam iguais perante a lei. O doutor em Direitos Humanos pela USP e especialista em Direito e Raça, Tiago Vinicius Andre dos Santos observa que os relatórios internacionais confirmam que as leis, por si só, não são suficientes para alterar a cultura de uma sociedade. “Por isso, a importância de pessoas negras com letramento jurídico racial. O instituto é coordenado por doutores que experienciam situações de racismo. Profissionais que compreendem aquilo que estudam e aquilo que falam”, afirma Tiago.

A mais nova do trio, Beatriz Cardozo, de 25 anos, é vice-presidente do IDPN. Moradora de Brás de Pina, bairro da Zona Norte do Rio, ela se formou na Uerj, onde entrou pelo sistema de cotas Foto: Leo Martins / Agência O Globo

A mais nova do trio, Beatriz Cardozo, de 25 anos, é vice-presidente do IDPN. Moradora de Brás de Pina, bairro da Zona Norte do Rio, ela se formou na Uerj, onde entrou pelo sistema de cotas. Assim que passou para a faculdade, descobriu que estava grávida. Os primeiros períodos foram intensos: “Tirei muito leite no banheiro e cheguei a ouvir de uma professora que aluna não podia engravidar”, lembra. Filha de um gari com uma auxiliar de dentista, ela e o irmão foram os primeiros da família a fazer faculdade. “Só passei a me identificar com a profissão perto de me formar, quando conheci o coletivo Direito Negro da Uerj, criado pela professora e juíza federal Adriana Alves Cruz”, comenta ela, que é residente jurídica na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. “Trabalho principalmente com menores infratores e, em 95% dos casos, eles são negros. Queremos formar uma rede de advogados diversa e influenciar as políticas públicas. Buscaremos somar ao que já existe, trabalhar junto com a Defensoria Pública e outras organizações.”

Como mãe e mulher negra, um dos desejos de Beatriz é que a vida seja mais fácil para sua filha de 7 anos. “Nós, negras, precisamos estar sempre lutando. Todos os meus estágios foram em órgãos públicos. Nos escritórios em que fiz entrevistas, já somos desclassificadas por causa do endereço”, adianta Beatriz.

Em breve, o Instituto de Defesa da População Negra começa a recrutar advogados para formar o grupo que trabalhará no escritório, no Centro do Rio, em espaço dividido com o Frente Favelas na Luta. A ideia é começar por aqui e, depois, expandir para outros estados. “Ainda há muito a caminhar, a viver e a continuar colocando o corpo à disposição da luta”, finaliza Ana Paula.

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