“Há um mercado da morte. Há uma tolerância absoluta da sociedade com essa violência institucional”

Entrevista exclusiva ao Caderno de Notícias (CN) com Vilma Reis, socióloga, filha do Terreiro do Cobre, ativista do Movimento de Mulheres Negras do Brasil, mestra em Ciências Sociais, doutoranda em Estudos Africanos, defensora de Direitos Humanos e co-fundadora da Mahin Organização de Mulheres Negras. É pesquisadora associada ao ICEAFRO – Instituto Ceafro, foi ouvidora geral da Defensoria Pública da Bahia (2015 a 2019) e presidenta do Conselho Nacional de Ouvidorias Externas das Defensorias Públicas no Brasil (2018 a 2019).

Em conversa com a jornalista Claudia Correia, Vilma critica a violência institucional e a ação da polícia que atinge de forma mais cruel a juventude negra. Defende a organização das comunidades para o exercício do controle sobre as políticas públicas e aponta alternativas de ação para o combate à pandemia da Covid-19 a partir dos movimentos sociais. Confira! [Áudio disponível no final]

Caderno de Notícias – Você tem se destacado nacionalmente no Movimento de Mulheres Negras, como se deu esse processo de engajamento político nessa militância pelo “Bem Viver” articulando as lutas de classe, gênero e raça?

Vilma Reis – Eu comecei com 15 anos no movimento social, desde o Colégio Presciliano Silva, desde a minha escola lá. Eu nasci em Marechal Rondom, cresci em Nazaré das Farinhas, no Recôncavo. Quando eu vim para Salvador definitivamente, já que eu vinha todo ano, ajudar meu pai em barraca de festa de largo, quando eu voltei para Salvador com 13 anos fui estudar na Vila de Menores, em Paripe, no Colégio Edson Tenório. Desde lá que eu me envolvo com o teatro comunitário, com as lutas para organizar horta, formação de plateias, nesta escola fantástica que era a Vila de Menores em Paripe. Eu era semi-interna, passava o dia todo na escola e só voltava para minha casa no final da tarde. Eu tive uma escola muito bacana, uma escola pública onde eu tive os primeiros contatos com a língua estrangeira, com o inglês, o francês. Essa escola mudou muita coisa em minha vida, através da SUBA nós fomos para a inauguração dos museus, o que se fala como tão sofisticado, formação de plateia, através da SUBA que era a empresa pública do governo do estado, nós íamos em todos os espaços de cultura fazer formação de plateia, imagine, em 1983.

Então quando eu cheguei em 85/86 no Colégio Presciliano Silva, já na 6ª, 7ª, 8ª série, que era assim o nome, eu já cheguei envolvida com o movimento em defesa da escola pública. Eu já cheguei assim mesmo e de lá para cá, nesses 35 anos, agora eu tenho 50 anos, o que eu fiz foi participar da luta política na minha cidade, no meu estado e no meu país. Então é claro eu sinto que essa articulação das lutas de raça, gênero e classe elas estão intercruzadas na nossa vida, e nós nos colocamos contra o desenvolvimentismo, um discurso em torno do desenvolvimento, do progresso, deixando a população negra e particularmente as mulheres negras para trás. Nós somos contrárias. Eu sou uma ativista do Movimento de Mulheres Negras, sou da Mahim, Organização de Mulheres Negras e nós que construímos a Marcha de Mulheres Negras que culminou nesse movimento fantástico, em 2015, em Brasília e que dá seus desdobramentos nesse momento em todo o Brasil, nós afirmamos o Bem Viver como uma proposta nossa, da visão que nós temos de que a natureza precisa ser respeitada, que os recursos naturais não são inesgotáveis e que precisamos ter outra relação com a sociedade e a economia.

Seus discursos nos espaços de debate público sempre são bem ilustrados por uma literatura robusta. Você se considera uma “intelectual orgânica”? Como concilia carreira acadêmica com a militância política?

Eu me considero sim uma intelectual orgânica. Eu penso que os nossos títulos de graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado e todos os títulos que nós temos, toda a nossa produção intelectual acadêmica, ela deve estar à disposição da libertação de nosso povo. Foi assim que a gente aprendeu com Lélia Gonzalez, com Amílcar Cabral, com Luísa Bairros e com todas as nossas irmãs que construíram a luta, Beatriz Nascimento, Abdias Nascimento, Carolina Maria de Jesus e toda essa geração que está de pé aqui nesse momento, como Edson Cardoso, Sueli Carneiro, todas essas mulheres. Makota Valdina nos ensinou, ela nos disse que nós somos instrumento, somos continuidades, essa lição que nós aprendemos também com Luísa Bairros. A minha carreira acadêmica está completamente em consonância com a minha militância política. Eu sou uma mulher de práxis, de pesquisa-ação. O sentido que eu dou para minha produção acadêmica, meu trabalho de graduação que é “A operação Beiru: falam as mães dos que tombaram”, a minha dissertação de mestrado que é “Atocaiados pelo Estado: As Políticas de Segurança Pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações de 1991 a 2001”, portanto eu pesquisei uma década. Essa é uma década que custaram, muitas, milhares de vida na Bahia e eu pesquisei os bairros populares de Salvador, a dor das mães negras e essa tragédia que é a matança de jovens negros. Eu acompanho e estou junto com outras companheiras como Ana Flauzina, Ana Paula Maravalho, e tantas outras mulheres negras, nós criamos um campo de pensamento no Brasil que é como abordar essa questão da violência, da letalidade, mas, ao mesmo tempo como a gente fortalecer uma agenda de direitos humanos e de direito à vida para a população negra. Então o meu trabalho de graduação defendido em 2001, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, a minha dissertação de mestrado defendida em 2005, na mesma instituição, e nesse momento através do Pós Afro, eu desenvolvo e finalizo minha tese de Doutorado, são todas no mesmo campo. No ano passado eu produzi com as companheiras da USP o “Interfaces do genocídio no Brasil”, um livro importante sobre gênero, raça e classe nessa questão do confronto do Estado, do braço armado do Estado, que compromete a vida do povo negro. Eu penso que esse nosso discurso público só faz sentido se realmente for no espaço de construção coletiva e para nós fortalecermos uma agenda para inclusive mudar a atitude inclusive do Sistema de Justiça.

“HÁ UM SILÊNCIO SOBRE A AÇÃO VIOLENTA E COVARDE DO ESTADO CONTRA O POVO NEGRO.”

Como você vê o debate sobre a violência policial e o combate ao Racismo na Bahia?

Eu considero que tem um grande silêncio sobre essa questão. Há um silêncio sobre toda essa violência que percorre o Nordeste brasileiro, há um silêncio sobre a ação violenta e covarde do Estado contra o povo negro e particularmente quando você vê que os cemitérios de Salvador, a maioria das pessoas enterradas nos cemitérios populares, de Paripe, Plataforma, Periperi, Quinta dos Lázaros, e se você vai a Simões Filho, a maioria das pessoas nasceram depois de 1990. Isso é uma tragédia. A gente está falando de milhares de pessoas, e o impacto para essas mães que muitas vezes se tornam mortas-vivas. Há um mercado da morte. Há uma tolerância absoluta da sociedade com essa violência institucional. O que nós que somos defensoras dos direitos humanos estamos buscando fazer é exatamente desconstruir essa naturalidade, enfrentar essa naturalização que se alimenta da desumanização da juventude negra, da população negra em geral, do desrespeito e aniquilamento à voz e à posição das mulheres negras. Então essas questões que nos custam muito caras e que tem a ver com a banalização da vida negra, tem a ver com a manutenção de regras que são neocoloniais, que é de acordo com esses privilégios seculares de manutenção da branquitude sem questionar privilégios, como bem nos disse Milton Santos e que a gente tem levantado em todos os nossos trabalhos. Eu sou uma pesquisadora que estou quase há 30 anos em campo, eu entrei na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas em 1995, na graduação, e eu já vinha de uma longa experiência de trabalho dentro do movimento de mulheres, desde 1990, quando criamos o Coletivo de Mulheres Negras da Bahia. Tenho uma posição que foi formada no movimento de mulheres negras, de não aceitar essa naturalização que desumaniza mulheres negras, homens negros, anula a existência dos homens negros e aniquila a esperança da juventude, da adolescência e da infância negra. Sem falar no aniquilamento de idosos negros, o desrespeito às mulheres negras idosas e tudo mais. Nós precisamos fazer enfrentamento político.

As mulheres continuam sub-representadas nos Poderes Públicos, particularmente as negras. Como você avalia o processo de escolha da candidatura à Prefeitura de Salvador pelo Partido dos Trabalhadores?

Em relação a esse processo das pré candidaturas, e todo o processo que nós lideramos em Salvador desde o dia 2 de julho de 2019, com o movimento Agora é Ela por uma cidade de direitos é importante a gente dizer que sim as mulheres, e todas as mulheres continuam violentamente sub representadas nos poderes públicos no Brasil, Mas, a situação das mulheres negras é dramática. Nós precisamos colocar isso sobre a mesa. Nós decidimos incidir na questão política de Salvador depois de 470 anos de ocupação colonial do poder. Nós tomamos os tabuleiros das mãos dos players da política. A gente está fazendo esse debate particularmente com o campo dos homens brancos mais velhos, de classe média que governam com mão de ferro os partidos de esquerda na Bahia e no Brasil. Essa vitória momentânea que nós tivemos com esse projeto e essa consulta que a companheira Benedita da Silva fez ao TSE é muito importante. Nós temos uma representação de 2,1% de mulheres negras nos espaços de poder e nós temos também uma baixíssima representação de todas as mulheres no congresso nacional brasileiro, por exemplo. Mas, nós acreditamos que a movimentação política que nasceu em Salvador ela definitivamente mudou o Brasil, mudou as eleições de 2020 e nós acreditamos numa mudança muito mais profunda, nós estamos plantando essas possibilidades de mudança agora e nós ainda vamos colher muitas respostas importantes de mudança para frente. Essas são questões fundamentais para nós.

Que estratégias você considera importante para ampliar a presença das mulheres negras na Câmara Municipal de Salvador nas próximas eleições?

É importante a gente dizer que é importante termos recursos para investir nas campanhas, termos o cuidado de ponto de vista da comunicação eleitoral, do que se faz com as campanhas das mulheres negras. É muito necessário e urgente que as candidaturas das mulheres negras não sejam tipo simbólicas, para experimentar. A gente precisa acreditar que são projetos viáveis, viabilizar esses projetos, fortalecer esses projetos, apoiar amplamente a iniciativa das mulheres negras. A posição do Fórum Marielles é definitiva nessa questão aí, nessa posição política que colocamos sobre a mesa, que estamos conduzindo uma revolução nesse momento. O Fórum Marielles que nasceu aqui em Salvador, um ano depois do brutal e covarde assassinato da nossa irmã Marielle Franco, nós precisamos botar essa questão de pé mesmo. É preciso ter mídia training, é preciso ter o cuidado editorial do material, garantir ter tempo de TV e de rádio, todos os espaços e todos os direitos que tem a candidatura de um homem branco. É preciso que a gente canalize para as candidaturas das mulheres negras. É assim que a gente vai mudar essa cultura política e garantir efetivamente a alternância nos espaços de poder. Sem essas mudanças estruturais a gente não provoca mudança necessária no desenho do poder na nossa cidade, no nosso estado, no nosso país.

“NÃO É POSSÍVEL A GENTE AGUENTAR OS DESDOBRAMENTOS DA PEC 95 NAS NOSSAS VIDAS, COM O CONGELAMENTO DOS INVESTIMENTOS EM SAÚDE, EDUCAÇÃO, POLÍTICAS SOCIAIS.”

A partir de sua participação no Comitê Comunitário Virtual de Monitoramento das Ações de Enfrentamento da Covid-19 nos Bairros Populares de Salvador como você avalia as ações dos governos municipal e estadual no combate à pandemia?

O Comitê para a gente é uma experiência política de organização comunitária muito importante porque é daqui que a gente está construindo a proposta de fazer a formação continuada de Educação em Saúde e também fortalecer as representações comunitárias, as lideranças, fazendo emergir uma juventude nos bairros de Salvador. Nós já estamos em 60 bairros de Salvador, em diferentes regiões, estamos em Cajazeiras, Águas Claras, Paripe, Alto do Cabrito, Calafate, região da San Martim, Liberdade, Engenho Velho da Federação, Calabar, São Marcos, Canabrava, Nordeste de Amaralina e tantas outras regiões. É importante a gente dizer uma coisa: a sensação que nós temos é que esse espaço de organização comunitária tem feito com que a gente retome a organização política nos bairros para garantir que tenha controle social da gestão pública municipal e sobre a gestão pública estadual. A garantia e a efetividade da DEAM Digital é um exemplo. Nós pautamos a questão do vale alimentação para os estudantes da rede estadual. No início o governo tinha profunda resistência e foi graças ao trabalho incansável do comitê junto com a Defensoria Pública, fazendo incidência política que nós garantimos. Nós temos muita fé e realmente uma posição política de fortalecer essa posição que é da sociedade. Antes da pandemia da Covid-19 vergonhosamente Salvador tinha uma cobertura de 37% da saúde básica, um município que é uma metrópole, que tem a gestão plena da saúde. Isso é uma coisa vergonhosa. Graças a essa ação política, organizada, coordenada, que a gente está garantindo, e provocando alguns constrangimentos tanto no governo municipal como no estadual. O abandono da situação de Ilha de Maré e das outras ilhas que compõem Salvador, quer dizer todas as medidas que estão sendo tomadas é graças a nossa ação de controle social. Tenho muita esperança que a gente pós-pandemia continue essa organização porque não é possível a gente aguentar os desdobramentos da PEC 95 acontecendo realmente em nossas vidas, com o congelamento dos investimentos em saúde, educação e políticas sociais. A resposta para nós passa exatamente por essa organização, controle social e vigilância política e democrática para a efetivação das políticas públicas para que a única política que chegue em nossa vida não seja absurdamente o braço armado e covarde do Estado, para destruir vidas e aniquilar esperanças. Nós não aceitamos o sabotamento da esperança de nosso povo. E a forma que a gente tem para responder é essa.

Entrevista concedida a Claudia Correia em 25/08/2020

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