“Lutei e provei inocência do meu filho, hoje ajudo mães em penitenciárias”

Durante toda a minha vida lutei para ter um espaço na sociedade. Por ser mulher, negra e pobre, as coisas sempre foram mais difíceis. Apesar disso, me orgulhava de ter criado bem meus três filhos, Valdeci, hoje com 36 anos, Wanderlei, 33, e Walter Cristiano, 30. Acreditava que tinha conseguido mostrar a eles um mundo mais igualitário.

Pensava assim até conhecer o sistema prisional pelo lado de dentro. Em 2013, no dia 14 de março, meu caçula foi preso, acusado de associação ao tráfico de drogas. Na primeira vez em que fui visitá-lo na cadeia, o que vi foram muitos jovens, a imensa maioria negros, amontados em cubículos, tratados como dejetos. Cada um daqueles meninos podia ser o meu filho, e estavam todos largados naquele lugar horrível, equiparável a uma senzala.

Saí de lá inconformada, abalada, sentindo uma revolta enorme. Ao mesmo tempo, sofria pelo que estava acontecendo com o Walter. Resolvi que eu faria de tudo para libertá-lo -porque eu tinha certeza da sua inocência- e também para ajudar aqueles pobres ignorantes fabricados por um sistema tão falho e desumano.

‘Quando soube que ele foi preso, fiquei sem chão’

Mesmo com todas as minhas crenças, quando soube que um filho meu estava em uma delegacia, fiquei sem chão. E a forma como descobri também não ajudou. Naquele dia, ele tinha saído com um primo. Durante a madrugada, como ainda não tinha voltado, fiquei preocupada e liguei no seu celular. Era por volta das 2h.

Quem atendeu falou o seguinte: ‘A casa caiu’. Achei que era ele brincando comigo e insisti em saber onde estava, aí disseram que era da polícia e que o Walter Cristiano havia sido preso em uma cidade próxima, Brodowski (SP). Nós moramos em Batatais, no interior de São Paulo.

Fui para a delegacia na hora, mas não tinha ideia do que estava acontecendo e nem da gravidade do caso. Era um universo que eu não conhecia. Lá, descobri que o crime de associação ao tráfico é hediondo, sem fiança, e o delegado recomendou que eu fosse atrás de um advogado.

Num primeiro momento, foi difícil acreditar que era mesmo o meu caçula. Falei para os policiais que eles estavam enganados, até que me deixaram vê-lo. Depois, confesso, o pensamento que veio foi “não conheço o meu próprio filho, não consegui ensinar nada para ele”.

Mas no fundo eu tinha certeza de que não era culpado. Ele sempre foi um menino bom, trabalhador, estudioso, honesto e sem qualquer passagem pela polícia.

O que aconteceu foi que o primo dele foi contratado por uma mulher para buscar o marido dela em Ribeirão Preto, e ele foi junto para fazer companhia. Na volta, foram parados, e esse homem que estava no carro era um traficante procurado. Só que eles nem se conheciam.

Mas como provar que não tinham envolvimento algum, com os policiais garantindo outra coisa e com todos os fatores contra ele, ou seja, um negro, altas horas da madrugada, em carro com um procurado da polícia sem ter sido obrigado a isso por uma arma apontada para a sua cabeça?

‘Cheguei a ir a Brasília pedir clemência’

O Walter ficou nove meses no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pontal (SP), a 80 km de Batatais, aguardando julgamento e, mesmo o traficante afirmando que nunca haviam se visto antes, foi condenado a oito anos. Primeiro, ele foi mandado para a Penitenciária de Pirajuí, distante 300 quilômetros de onde moramos, depois, consegui que fosse transferido para um pouco mais perto de casa, para a Penitenciária de Serra Azul.

Tudo o que aconteceu com ele, tenho certeza, foi por causa da raça, porque é negro. Não havia provas, inclusive, o traficante garantiu que nunca o tinha visto antes e que não atuavam juntos. Mas, infelizmente, é assim que as coisas funcionam no Brasil.

Durante esse período, nossa família viveu momentos de muita angústia e dor. Mas decidi ir à luta. Minha primeira atitude foi procurar um advogado, ainda em Brodowski, logo depois da prisão. Como eu não tinha dinheiro para pagar, ele me aconselhou a ir atrás de um defensor público, só que esse processo demora e eu não podia esperar. Fiquei tão desesperada que disse que, se ele não pegasse o caso, eu iria me jogar embaixo de um caminhão.

Mesmo assim ele recusou, mas me apontou um caminho: procurar o Padre Agostinho, da Pastoral Carcerária de Ribeirão Preto (SP). Ele é bastante atuante em direitos humanos e junto ao sistema prisional. Com a ajuda dele, conheci muitas pessoas influentes e cheguei a ir para Brasília pedir clemência para o meu filho. Tudo o que eu queria era que a justiça fosse feita.

‘Advogada garantiu que meu filho deixaria prisão de cabeça erguida’

Por intermédio do padre, também entrou na minha vida a doutora Alexandra Lebelson Szafir, que escreveu o livro “DesCasos, uma advogada às voltas com o direito dos excluídos”. Foi ela quem mais nos ajudou, foi o nosso anjo da guarda.

Portadora de ELA (esclerose lateral amiotrófica), mesmo em uma cadeira de rodas e só se comunicando com os olhos, não só aceitou o caso sem cobrar nada, como me garantiu que meu filho seria absolvido e sairia pela porta da frente, de cabeça erguida. E assim foi. Depois de dois anos e meio, conseguimos provar sua inocência e ele foi solto.

Inconformada com o sistema, e por tudo o que passei, mais uma vez fui à luta, agora para ajudar outras mães com filhos encarcerados. Muitas vezes, elas não têm condições financeiras nem psicológicas para enfrentar a situação.

Convidei algumas para uma conversa na minha casa, o Walter Cristiano estava preso. Inicialmente, meu objetivo era incentivá-las a não abandonarem seus meninos dentro da cadeia, pois quando eles têm o apoio da família, é mais difícil se entregarem às coisas erradas que acontecem nesse tipo de lugar. Também ajuda a enfrentar o preconceito que a sociedade joga sobre eles.

Nas primeiras reuniões, vieram umas 15 mulheres, mas aos poucos o número foi aumentando, e aí a minha sala ficou pequena. Tive de buscar um lugar maior e consegui que a prefeitura me cedesse uma classe em uma escola na periferia. Hoje, nosso grupo é bem grande, conta com cerca de 270 famílias, e se transformou em uma associação, a AMB (Associação Amor de Mãe de Batatais).

‘Agora luto para meus netos crescerem numa sociedade justa’

Criamos um estatuto, para legalizá-la, e, além de acolhimento e escuta, damos orientação, promovemos palestras com advogados, assistentes sociais, médicos, defensores públicos e líderes religiosos, e ainda prestamos assistência para um grupo de 30 garotos, com idade entre 7 e 14 anos. Por enquanto, não analisamos processos judiciais porque não temos um advogado voluntário, mas estamos buscando.

Claro que eu não queria ter passado por tanto sofrimento, mas posso dizer que me sinto realizada. Consegui provar a inocência do meu filho e ajudá-lo a retomar a vida. Ele se casou, tem dois filhos e está no segundo ano do curso de Serviço Social. Também me sinto grata por poder auxiliar outras mães.

Agora, aos 55 anos, tudo o que quero é que meus netos cresçam em uma sociedade igual e que nunca sejam confundidos com bandidos pelo simples fato de serem negros. Ainda tenho esperança de ver esse dia chegar.”

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