Vários crimes de racismo contra negros provocaram manifestações públicas, em 2020. A visibilidade da violência racial fez reemergir a consciência de que o racismo ainda prevalece no Brasil. Os negros estão ausentes de todas as carreiras de poder – legislativo, judiciário, ministério público, forças armadas, jornalismo, docência universitária, postos executivos nas empresas. Na periferia, a polícia militar impõe um apartheid contra os negros, produzindo o maior número de execuções sumárias do mundo.
O racismo voltou a ser atribuído ao legado da escravidão, como se o passado se prolongasse automaticamente para o futuro. Para evitar esse flagrante anacronismo, talvez devêssemos recorrer ao conceito de etnocracia, trabalhado pela cientista política Kate Cronin-Furman, do University College, de Londres: “um sistema político no qual as instituições do Estado tradicionalmente servem os interesses de um grupo étnico politicamente dominante”. Aqui, os brancos.
No Brasil supostamente democrático, os aparelhos repressivos do Estado – polícia, justiça, prisões – servem para proteger os interesses dos brancos, que tratam os negros, hoje maioria na população, como se fossem a principal ameaça à ordem.
Nos idos de 1990, o chefe de polícia do Rio de Janeiro, Hélio Luz, dizia que a elite carioca tratava a polícia como se estivesse a seu serviço. Em 1995, o sociólogo Sérgio Adorno, da Universidade de São Paulo, publicou seu pioneiro e seminal estudo sobre discriminação racial e justiça criminal em São Paulo, demonstrando que, pelo mesmo crime, os negros eram proporcionalmente mais condenados do que os brancos. E que a maior criminalização do comportamento infracional de negros resultava na maior quantidade de negros encarcerados.
Recentemente, dois casos implicando repressão policial arbitrária e condenação de jovens negros, na zona Sul da cidade de São Paulo, são exemplos daquelas práticas. Em 18 de junho de 2019, Joel Rodrigues do Nascimento Junior, 21 anos, testemunhou, na rua onde mora, dois ladrões abandonarem uma moto furtada. Joel foi processado pelo roubo, com base no testemunho de um PM e em um procedimento irregular de reconhecimento pela vítima. A juíza não contestou as versões do policial nem da vítima, únicas testemunhas ouvidas – ainda que nove pessoas do bairro, entre comerciantes, moradores e a empregadora do Joel, tenham sido arroladas como testemunhas em seu favor.
A juíza alegou que não ouviu as testemunhas da defesa porque houve troca de advogado e entendeu que teria havido preclusão do direito fundamental de apresentar testemunhas. Condenado em primeira instância a 5 anos e quatro meses de prisão, em junho de 2020, Joel apresentou recurso, mas continua preso.
Os jovens João Igo Santos Silva (Igo Ngo), 37 anos, e Felipe Patrício Lino Ferreira (Felipinho), 20 anos, foram presos em 2 de janeiro de 2021, acusados de roubar uma bolsa. O ônibus em que voltavam para casa foi interceptado pela polícia e os dois, detidos, supostamente por terem as características dos suspeitos indicados pela vítima: “dois jovens negros”. Eles não participaram do crime e sequer sabiam o que tinha acontecido. A falha foi sanada temporariamente. A promotora de Justiça manifestou-se pela liberdade provisória, mas somente um pedido de habeas corpus concedido pelo Tribunal de Justiça colocou os jovens em liberdade.
Nos dois casos, fica patente que, dependendo do local de moradia e da cor da pele, defesa e testemunhas tendem a ser ignoradas. Essa é apenas uma entre as inúmeras ilegalidades da atuação policial – como abuso de autoridade, violação do direito à ampla defesa, falta de fiscalização da polícia pelo Ministério Público, iniciada na fase do registro na Delegacia de Polícia e reiterada na fase judicial.
O resultado é mais do que conhecido: jovens com residência fixa, trabalhando ou estudando, com família e amigos, quando envolvidos em acusações infundadas, julgados e condenados por crimes que não cometeram. Sem direito a ampla defesa, que seria levada em conta… caso fossem brancos.
Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, foi membro e coordenador da Comissão Nacional da Verdade.
André Alcântara é secretário executivo da Comissão Arns.