Almoço das 400 mil mortes

Tá cada vez mais down na high society. Como canta Elis Regina, a crise já está virando zona. Deve dar indigestão sentar-se ao lado do homem que regurgita 400 mil mortes por Covid-19. Deveria dar, ao menos. Crime de lesa-humanidade não compõe boa entrada para o almoço. Ao andar de cima, indigestão é para os fracos. É para o filho do porteiro que estudou na universidade pelo Fies, pensam. Para quem está acostumado a lecionar economia no Chile de Pinochet, os fracos devem ser os outros.

E daí? A mesa está posta, o vinho servido, a máscara descartada, a branquitude presente. Por que não desfrutar do almoço enquanto o resto do país volta ao mapa mundial da fome e, se não fossem campanhas como a Tem Gente com Fome e o auxílio que o governo não queria, seria ainda pior?

Enfileiram-se as empresas com hashtag vidas negras importam. Importam sim, dirão, exceto as 400 mil vidas que perdemos por inação e ação de quem se assenta ao seu lado na mesa.

De entrada, serviremos uma porção de ar. Ar puro. O mesmo ar que faltou em Manaus. O mesmo ar de cuja escassez o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, soube ao menos quatro dias antes do colapso no Amazonas. Em 11 de janeiro, Pazuello relatou a conversa que teve com a cunhada cujo irmão estava “sem oxigênio nem para passar o dia”: “O que você vai fazer?”, ela perguntou. Resposta do ex-ministro: “Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio e ser distribuído. Vamos com calma.” Em homenagem a todos que padeceram sem ar, a entrada no almoço de hoje com o presidente será: ar. Respirem sem parcimônia!

Óbvio, a bebida não pode faltar. Serviremos água e vinho. Água, claro, é potável. Diferente da água que circula no estado do Rio de Janeiro, apesar do martelo no leilão e o sorriso para foto. Em homenagem ao veto presidencial de 8 de julho de 2020, serviremos a água potável que o governo federal negou fornecer, no auge da pandemia, a indígenas, quilombolas e povos tradicionais em extrema situação de vulnerabilidade. Serviremos água cristalina diretamente tirada da boca de indígenas. Aos espíritos mais festivos, dispostos a celebrar o feito macabro de 400 mil mortes por Covid-19, serviremos vinho.

Serviremos o cálice do sangue de todas as mortes que poderiam ter sido evitadas e não foram.

De prato principal, serviremos cloroquina, azitromicina e ivermectina. Mais precisamente, serviremos 31 milhões de comprimidos sem eficácia contra a Covid-19, a mesma quantidade enviada pelo governo federal aos estados. Gastamos R$ 126,5 milhões com esse prato principal. Espero que apreciem!

Esperamos também que não morram ao inalar cloroquina nebulizada, como aconteceu com uma paciente em Manaus em 2 de março, após médicos aplicarem esta terapia ineficaz, mas difundida pelo homem que se assenta ao seu lado. Teremos, ademais, um prato surpresa. Sigiloso. Como também são sigilosos os gastos no valor de R$ 150 mil do Exército brasileiro na pandemia, autorizados em fevereiro pelo presidente.

De sobremesa, teremos crimes contra a humanidade e genocídio. Mas não se preocupe, os outros que sentirão o amargo. Os senhores e as senhoras sentirão apenas a doçura do leite condensado, muito leite condensado. Sentirão apenas o frescor da fila VIP da vacina em Miami, a brisa dos jatinhos sobrevoando Trancoso, a água no rosto durante o passeio de jet-ski nas férias pagas com dinheiro público.

Ao final, tiraremos uma foto. Uma foto alegre, onde possamos ver todos os seus dentes e peles alvas. Num país onde não há justiça, o que nos resta é a memória: uma forma de eternizar, antes que esta nos falhe novamente, quem com a morte se assentou na mesa dos hipócritas.​

 

 

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