Por que é tão difícil e importante abordar sobre as designações de gênero na Educação?

As salas de aula são sempre provocativas. Ser professora ou professor é desafiador e não é necessário aqui abordar todos os motivos, mas entre alguns deles, há as dificuldades de aprendizagem – cada vez mais latentes – as sócio econômicas e as psicológicas. A escola (sobretudo a pública) no Brasil opera no limite: salas superlotadas, docentes exaustos devido às longas jornadas de trabalho e falta de apoio básico técnico e mental. Estudantes também clamam por uma escola inclusiva e que realmente seja para todos e todas na prática e não somente na bela teoria pedagógica que aprendemos. 

A estrutura da escola, a disposição dos corpos em salas de aula nos diz muito sobre as dificuldades ou a problemática da inclusão. Como declarou Foucault, “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (1987, p. 163). Há espaço mais disciplinador e organizador de corpos que a escola?

Posto que a instituição escolar tenha ainda muitos aspectos inspirados nos séculos passados, o mundo não é mais o mesmo há tempos e a juventude acompanha tudo de forma eficaz. Aqueles que foram jovens nos anos 80 e 90 – história recente – já impressionam-se sobre como ficaram para trás, sobre como a liberdade que tinham (ou achavam que possuíam) não é mais a mesma. Não é possível dissociar que jovens das décadas passadas frequentaram uma escola pós regime militar, o que nos diz muitas coisas sobre o tipo de aprendizado e o teor das discussões. Todavia, o docente que acredita que formou-se para transmitir conteúdos e somente isso, sofre e sofrerá cada vez mais frustrações. A escola pode ser a reprodutora de corpos dóceis (Foucault, 1987) mas as lutas e a resistência em favor da diversidade desorganizam essa polida estrutura.  

Pois bem, em se tratando de designações de gênero, abre-se diante de nossos olhos o questionamento que Guacira Lopes Louro nos trouxe: qual é o gênero da escola?  A autora segue então em duas possíveis “respostas”: pode ser feminina, no sentido que é majoritariamente constituída por mulheres ou, como outros afirmam, masculina devido ao nosso conhecimento produzido ser historicamente construído por homens. Continua afirmando que o que fica evidente é que a escola é atravessada pelos gêneros, não é possível pensar a instituição sem refletir sobre as construções do que é o masculino e o feminino, isto é, do significado de gênero (2021, p.93). É ainda um espaço binário, em que as diferenças e as diversas designações ainda não são compreendidas e o mais lamentável, não são respeitadas. 

Em algumas rodas de conversa com estudantes do ensino fundamental sobre o assunto, alguns sentiram-se envergonhados em abordar a temática, possivelmente pela educação que recebem em suas casas; mas a grande maioria precisava e ansiava debater o assunto. Um dos maiores problemas é que entre a vasta quantidade de conteúdos ditados pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o conservadorismo familiar que foi ainda mais exaltado com o último presidente da República brasileira, o espaço para estes debates é reduzido ou inexistente. E aos docentes que se “arriscam”, não é incomum serem acusados de propagarem a fantasiosa ideologia de gênero quando se propõem a trabalhar sobre a diversidade, questões relativas ao corpo, à proteção da mulher ou o não binarismo. As consequências da falta de debate são vistas nas estatísticas: evasão escolar, abusos sexuais, suicídios, feminicídios e o ranking que tanto nos envergonha, de o Brasil ser “campeão” em mortes de pessoas trans. Sim, a escola tem muito a ver com tudo isso.

Pois bem, por mais retrógrada e sexista que a instituição escolar pode ser, é lá que formamos grande parte do que somos e do que levamos para o mundo. E por mais que o processo seja coletivo – estudantes, mantenedoras e gestores –  são os professores e professoras que estão no front. Logo, há muito trabalho a fazer. O início consiste em perceber que pessoas estão ali e que a atividade docente não é mecânica. Nesse sentido, bell hooks nos ensina: “Para começar, o professor precisa valorizar de verdade a presença de cada um. Precisa reconhecer permanentemente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula, que todos contribuem. Essas contribuições são recursos” (2017, p.18).

O segundo ponto que pode parecer óbvio, mas precisa ser elucidado, é que docentes não podem ser preconceituosos. A exclusão é feita pelo olhar, pelos gestos, pelas ironias. São violências simbólicas. Quando relacionadas às mulheres e estudantes LGBTQIAP+, são ainda mais dolorosas, porque a sociedade já se encarrega de exercer a violência seja ela simbólica ou física. A escola deve, ao contrário, acolher. Como elucidou Paulo Freire, “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” (2003, p.35). Não há como ocorrer a essencial relação de cumplicidade sem que haja de fato a inclusão. 

Outro ponto é o diálogo. Não formamos estudantes sem as listas de conteúdos, porém é essencial o entendimento de que não é somente isso, é isso, mas também a pesquisa, o importar-se, o olhar, o debate. Um exemplo clássico em que há diversas discordâncias é a Educação Sexual nas escolas. A expressão é formal e parece reguladora, contudo, deveria ser responsabilidade de toda a escola, não de profissionais em específico. E por educação sexual, entende-se aqui algo muito maior do que estudar a genitália ou os métodos contraceptivos das aulas de ciências: compreende o respeito ao corpo, à diversidade, ao entendimento de gênero, da identidade de gênero, das diversas orientações e fenótipos que seres humanos podem ter. É levar adiante que a heteronormatividade ou cisnormatividade são palavrões vazios, é indagar, afinal, o que é “normal”. E para isso, não precisa ser de alguma área específica da Educação.

Muitos docentes podem e vão pensar que a teoria é bonita e fácil, mas que empiricamente falando, são questões bem mais complexas. O interessante é envolver-se, ler, procurar entender conceitos, ficar atentos e atentas às violências de gênero que acontecem nas salas de aula diariamente. Como sugeriu o título, ninguém disse que seria fácil, mas certamente é compensador. 


¹  Professora de História, Mestranda em Educação pela Universidade La Salle na área de Gênero, sob a orientação da Dra Denise Quaresma da Silva


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 27 ed. Rio de Janeiro, Vozes, 1987. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa. 26 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2003.

hooks, bell. Ensinando a transgredir – A educação como prática da liberdade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação. 16ª edição. Rio de Janeiro, Vozes, 2014.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

+ sobre o tema

Você é Racista Sim

Você é Racista Sim. Eu já me deparei com inúmeras...

Por que o Covid-19 nos obriga a repensar nossa concepção de educação?

Secretarias, conselhos, universidades, gestores, professores, educadores e especialistas em...

“Seminário 20 anos sem Clóvis Moura” – Resgate da vida e obra de um intelectual mais vivo do que nunca!

Parafraseando certo livro de filosofia política alemã, afirmamos que...

Reações ao mito da democracia racial no contexto moçambicano (séc. XX)

No início da década de 1950, houve uma crescente...

para lembrar

As escrevivências como ferramenta de cura

Pensar escrevivências é indiscutivelmente fazer memória a existência de...

Dia Internacional contra a LGBTfobia

O dia 17 de maio é reconhecido como o...

Negritude velada: As irmandades de negros de Sorocaba

Um fato que salta aos olhos, de imediato, ao se debruçar sobre as esparsas – e, por vezes, desencontradas – informações sobre a Irmandade...

Educação: direito negado, razão de lutas negras no século XIX

Não é difícil encontrar em circulação nas redes sociais nomes de grandes intelectuais negros que, especialmente entre os séculos XIX e XX, fizeram história...

O “lacre” é político: feministas negras que são ícones de estilo

Quem disse que uma militante não pode ser ícone de moda? Pois bem, venho informar que pode, sim! Você pode defender uma ou várias...
-+=