O humor brasileiro é racista?

Ao longo da última década, as grandes emissoras brasileiras de televisão enfrentaram diversos questionamentos sobre a representatividade negra nas telenovelas. Recorrentemente, novelas que têm poucos atores negros vem sofrendo cada vez mais críticas do público em geral e, além dessa maior demanda por representatividade em tela, os papéis destinados aos atores negros também são alvo de constantes reflexões e questionamentos tanto pela classe artística, quanto pelos movimentos negros brasileiros.

 Em uma entrevista concedida em 2022 para o site Universa, do Uol, Zezé Motta, uma das grandes atrizes negras da dramaturgia brasileira, foi enfática ao afirmar que não lê roteiros com papéis que reforçam estereótipos. Segundo ela, as próprias emissoras sabem que não podem chamá-la para interpretar personagens que se limitam a servir cafezinho e dizer “sim, senhora”. Tal postura salienta tanto as críticas das limitações impostas à classe artística negra, quanto ressalta as estratégias criadas por esses sujeitos para mudar o quadro racista presente nas artes cênicas. 

Ao mesmo tempo, apesar da insistente luta para ressignificar as representações negras nas artes cênicas, as personagens que remetem a antigos estereótipos sobre a população afrodescendente ainda são recorrentes, sobretudo nas comédias. Ao pensarmos sobre os filmes produzidos nos últimos 5 anos por estúdios brasileiros, e com grandes nomes do humor nacional, é fácil se remeter a personagens como: mulheres negras escandalosas, hiper-sexualidadas, com referências à figura da mulata, ou homens negros suburbanos considerados malandros e avessos ao trabalho.

A relação entre o gênero da comédia e a utilização de estereótipos negros antecede a emergência das indústrias do cinema e da televisão, e não é exclusividade do Brasil. No fim do século XIX, as teorias raciais estavam presentes em diversos meios de conhecimento: na medicina, na política, no direito e nas artes. Os debates sobre raça, cidadania e imperialismo, no processo de forjar uma nova modernidade Ocidental, também guiavam escritores, dramaturgos e diretores de teatro. Esses sujeitos, então, construíam personagens negras em espetáculos teatrais nas Américas e na Europa a partir de tais debates. O que contribuiu, inclusive, com a popularização das teorias de hierarquização racial.

O humor no teatro e a construção de estereótipos raciais

No começo do século XX, não era incomum encontrar dançarinas e cantores de jazz bands se apresentando em grandes cabarés de Paris e de outras capitais europeias. Muitos desses espetáculos remetiam a um continente africano estereotipado e recém colonizado pelos europeus, representado por homens e mulheres com pouca roupa e realizando danças definidas pela imprensa francesa do período como “frenéticas” e “primitivas”.

Nos Estados Unidos da América, por sua vez, famosos minstrels shows caíram no gosto popular. Esses espetáculos musicados tinham as mais variadas histórias e eram redigidos com a finalidade de contar a aventura ou o drama de personagens pitorescos. A “graça” do espetáculo, contudo, estava na forma que artistas brancos representavam personagens negras. Para isso, além de pintarem seu corpo com graxa preta e aumentar o contorno de suas bocas, olhos e narizes, os atores exageravam na forma de atuar, a fim de exaltar as “características negativas” em relação à população negra.

 Os homens negros eram repetidamente representados como ingênuos, ambiciosos, burros e as mulheres negras, como subservientes. Essas figuras interpretadas por meio da prática do blackface marcaram de forma tão profunda a cultura estadunidense, que as leis segregacionistas do país foram batizadas com o nome de um famoso personagem blackface, denominado Jim Crow, popularizado pelo ator Thomas D. Rice.

Discutir questões raciais pelo humor foi característico não somente do entretenimento estrangeiro, mas também das companhias teatrais brasileiras do começo do século XX. Na então capital do Brasil, o chamado teatro de revista caiu no gosto popular e se tornou parte das opções prediletas do lazer carioca durante os fins de semana na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Companhias brasileiras, como a Companhia do Teatro São José, emplacavam um sucesso atrás do outro e tiveram grande participação na consolidação de alguns estereótipos que são reproduzidos até os dias de hoje em programas de humor.

No ano de 1924, por exemplo, a companhia entrou em cartaz com a peça Seccos e Molhados, na qual o público acompanhava um trio de amigos, dois homens negros, um de pele mais clara e outro de pele escura, e um português branco (ver a imagem a seguir). A comicidade da peça se expressava justamente na autoimagem que cada personagem tinha de si, não correspondente à realidade de suas vidas. A coexistência contraditória entre a maneira que eles se enxergam e a forma como o público os via era crucial na construção dos estereótipos para os homens negros em cena, chamados Horácio e Sr. Roxo de Alegria.

Horácio era um homem negro analfabeto que tinha o costume de inventar palavras difíceis de modo que ele parecesse um respeitável intelectual. Durante sua jornada na trama, é recorrente que ele se expusesse ao ridículo para parecer mais inteligente que outras figuras no palco. Essa imagem do “mulato arrogante” foi utilizada tanto nas peças quanto em jornais mais conservadores do período, visando debochar de homens negros intelectuais e que tinham participação na política brasileira.

Se o “mulato pernóstico” era utilizado para rir dos intelectuais e políticos negros, o Sr. Roxo de Alegria, um homem retinto sem nome, remetia à figura de homens negros analfabetos que utilizavam da sua desonestidade para tentar se dar bem nas mais diferentes situações. Sr. Roxo de Alegria representava o malandro, que procurava sempre arrumar um jeitinho para conseguir realizar seus objetivos nas situações de adversidade.

A saga dessas duas personagens negras tão distintas se desenrolava conforme Horácio e Sr. Roxo de Alegria tentavam ajudar seu amigo português, Pardellas, a ingressar na alta sociedade carioca. Contudo, à medida que ele começa a enriquecer e se elitizar, ele percebe que os amigos representavam um contratempo para suas ambições de modernidade e inclusão na sociedade carioca. Isso fica evidente em um diálogo entre Pardellas e Horácio, no qual o português fingiu não conhecer seus amigos ao encontrá-los nas ruas do centro da cidade, afinal ambos eram analfabetos, pobres e negros. O caso resultou em um grande bate boca.

A comicidade das personagens negras do teatro brasileiro  era construída em conjunto com as características físicas adotadas pelos atores ao subir no palco. O uso de perucas para encrespar os cabelos, de graxa para escurecer a cor de pele e as técnicas para realçar os contornos dos narizes e olhos eram comuns nas principais companhias de teatro brasileiro. Isso ocorria tanto para suprir a falta de artistas negros nas companhias, mas também para fazer a plateia rir das características biológicas da população afrobrasileira.

 A partir dos recursos utilizados para a construção do humor fica evidente como os estereótipos raciais eram utilizados pelas companhias de teatro para discutir a questão da cidadania negra em um Brasil republicano e moderno. Tais recursos ainda são utilizados para demarcar posições e lugares sociais para a população negra. Afinal, quem não se recorda da personagem Adelaide, representada em blackface, que pedia esmola nos transportes públicos em um quadro do programa Zorra Total da TV Globo?

A comicidade criada e popularizada a partir de estereótipos é fundamental para entendermos a história do racismo no Brasil. Ao longo do período republicano, o humor sempre esteve vinculado a uma ideia de marcar diferenças e hierarquizá-las racialmente. A construção do riso passava pela identificação daquele que escapava das restritas normas da boa sociedade e, consequentemente, era inserido no ideário de não cidadão. Sua longínqua permanência sugere como, a todo tempo, a comédia recria lugares de subalternidade e exclusão para a população afro-brasileira. Os desafios de destrinchar essa estrutura é uma tarefa fundamental no enfrentamento às desigualdades historicamente construídas.

Assista ao vídeo da historiadora Lissa dos Passos e Silva no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).


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