Não entraria em avião pilotado por cotista?

Perigo está em ser conduzido por alguém que teve empurrãozinho em quase tudo na vida

“Responda com sinceridade, leitor. Você entraria confortavelmente num avião conduzido por alguém que, pelo fato de pertencer à minoria desfavorecida, recebeu um empurrãozinho na prova para obter a licença de piloto? E no caso de um neurocirurgião?” Pergunta Hélio Schwartsman em sua coluna “A multiplicação das cotas“.

Ele argumenta que é mais fácil justificar cotas no ensino do que na administração pública. Dado que os cotistas vão bem nas universidades, não faria sentido ter cotas. Uma bolsa de estudos para que eles pudessem se preparar para um concurso poderia ser discutida.

Bem, não é por aí. Já apontei em outra coluna aqui na Folha que as políticas de cotas, se bem desenhadas, podem ajudar a selecionar os melhores dentro dos distintos subgrupos populacionais e a resgatar o que se convencionou chamar de mérito. Na ocasião, o argumento foi para as reservas de vagas nas universidades, mas pode ser facilmente generalizado para defender a multiplicação das cotas para outras áreas. Não voltarei a esse argumento; caso o leitor tenha interesse, recomendo a leitura da coluna “Cotas podem ajudar a resgatar o mérito, enquanto excluem os medíocres”. Aqui o objetivo será discutir alguns fatores que contribuem para o baixo percentual das minorias no setor público.

O primeiro está relacionado aos incentivos. Apesar dos progressos na democratização do acesso às universidades, observa-se ainda um predomínio dos filhos das elites entre os graduados. Formamos muito pouco daqueles que não nasceram em ambientes privilegiados. E, na escolha entre ir para o setor privado e o público, a origem socioeconômica costuma fazer a diferença.

Quando não há um patrimônio familiar por trás, outros fatores entram em cena. O avanço da idade e a aversão ao risco podem exercer consideráveis influências nas decisões de carreira. Entre passar um tempo estudando para concurso, mesmo que seja com bolsa, e ir para o setor privado, não é raro que a última opção prevaleça. Existem uma demanda de consumo reprimida e a necessidade de ajudar os familiares.

Se a meta é promover um ambiente mais diversificado e incorporar uma variedade de perspectivas ao setor público, deveríamos discutir a combinação de cotas e bolsas de estudos. Isso poderia gerar incentivos para que os bons profissionais do setor privado migrem para o público.

O segundo aspecto diz respeito à maneira como alguns processos seletivos são conduzidos, o que pode resultar em vantagens para certos grupos. No caso das universidades públicas, por exemplo, mulheres, negros e brancos desfavorecidos muitas vezes enfrentam avaliações realizadas por bancas de seleção compostas, em grande parte, por homens brancos de origens bem privilegiadas. Mesmo que alguns desses avaliadores estejam cientes dos desafios enfrentados pelas minorias, é difícil defender que seus vieses não vão interferir no processo seletivo.

É relevante considerar também o potencial desdobramento positivo na educação básica. Ao começarem a perceber que as portas das oportunidades estão se abrindo para além daqueles que nasceram em berços de ouro, adolescentes de origens desfavorecidas podem começar a internalizar os significativos retornos da educação e a atribuir-lhe um novo significado desde cedo.

Dessa forma, Schwartsman, acredito que o sinônimo de excelência não está em criar subterfúgios que favoreçam a reprodução dos iguais. Como um bom leitor de suas colunas, afirmo que, sim, embarcaria em um avião pilotado por alguém desfavorecido que recebeu um empurrãozinho na prova para obter a licença de piloto.

Meu maior receio é ser conduzido por aqueles que receberam um “empurrãozinho” em quase tudo na vida. O que não concordo é com a dominância de uma elite branca masculina entorpecida de vantagens.

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