De vítima de racismo a policial

ERIC L. ADAMS

Reação às mortes violentas de Michael Brown e Eric Garner é oportunidade para combater os abusos policiais

Lembro-me como se fosse ontem: olhei no vaso sanitário e vi sangue em vez de urina. Aconteceu depois do meu primeiro encontro com a polícia. Tinha 15 anos, morava em South Jamaica, bairro do Queens, em Nova York, quando fui preso, acusado de invadir a casa de um conhecido. Os policiais me levaram para o 13.º Distrito – o mesmo no qual, mais tarde, Sean Bell foi morto a tiros pela polícia – e me colocaram numa sala do subsolo. Eles chutaram várias vezes minha virilha, a parte do meu corpo que mais visaram. Em seguida, me conduziram ao centro de detenção para menores de Spofford, onde passei a noite.

Depois do incidente, por sete dias, olhava no vaso sanitário da minha casa e via que urinava sangue. Dizia a mim mesmo que se aquilo não parasse no dia seguinte, contaria para minha mãe essa coisa vergonhosa, mas nunca tive a coragem de me abrir com ela. Quando recomecei a urinar normalmente, pensei que conseguiria deixar para trás aquele momento da minha vida. Nunca contei isso a ninguém, nem para minha mãe, até a idade adulta.

Enquanto tentava ignorar a vergonha e o ataque à minha masculinidade, novas histórias de horror me fizeram reviver essas lembranças: os pesadelos experimentados por Randolph Evans, Patrick Dorismond, Abner Louima e inúmeros outros jovens impediram que eu esquecesse do meu segredo. Imaginem todos os segredos que os jovens negros têm.

Quantos ocultam alguma verdade sombria sobre abusos sofridos e o que essa sombra representa para eles? Para trazer finalmente à luz do dia esses segredos, os EUA precisam tratar das origens dessa crise. A começar pelo reconhecimento de que a formação dada nas academias de polícia de todo o país não está sendo aplicada nas comunidades negras. Depois de seis meses de preparação numa dessas academias, essa formação acaba esquecida em apenas seis dias com os ensinamentos dos policiais veteranos nas ruas.

Aprendi isso em primeira mão. Não queria que outras crianças sofressem o que eu sofri. Por isso, procurei mudar alguma coisa no próprio sistema ingressando na polícia.

Mudança. Horas depois de sair da academia, policial novato, disseram-me: “Você preferirá ser julgado por 12 jurados do que ser carregado no caixão por 6”. Naqueles primeiros dias, quando eu era ainda muito impressionável, vi policiais saindo da delegacia todos os dias tocando os armários dos colegas mortos. Eles começavam o seu turno na defensiva, preocupados em proteger a si mesmos, e não às comunidades às quais serviam, independentemente da cor da pele dos seus habitantes.

Um dos meus colegas brancos certa vez me falou que se visse um branco com uma arma na mão se preocuparia em defender a própria vida e a do indivíduo, mas quando via um negro com uma arma, só tratava de defender a própria vida.

Essas são as lições que aprendi e essa é a realidade que encontrei policiando as comunidades negras, não apenas em Nova York, mas em todo o país. A injustiça e o seu legado não apareceram da noite para o dia, mas foram incorporadas à cultura da manutenção da lei e da ordem ao longo das décadas.

A liderança das polícias, que há muito tempo acredita na justiça do cassetete e do uso rápido do gatilho, reluta em punir policiais que apresentem graves antecedentes documentados de abusos contra cidadãos.

Esses indivíduos precisam ser expulsos da força policial. Trata-se de aspecto essencial da posição imprescindível a ser adotada para coibir abusos. Não podemos continuar encarando a função das polícias de uma maneira antiquada e isso inclui, evidentemente, a tecnologia.

A tecnologia tem sido usada como tática de combate ao crime, mas não como recurso para estabelecer o que acontece durante uma ação policial. A prefeitura de Nova York adotou a medida certa de instalar câmeras nos uniformes dos policiais, mas que tal algumas câmeras nas próprias armas?

Quando exerci o mandato de senador estadual, apresentei uma proposta que previa a utilização desses instrumentos sem que interferissem com a finalidade da arma. A proposta merece ser lembrada.

Na realidade, é possível fazer muito mais, instalando câmeras também nos veículos policiais. Não só a tecnologia iluminará as trevas desses confrontos policiais, como será importante para aumentar a confiança da comunidade na responsabilização efetiva de infratores.

Igualmente importante, especialmente depois do que aconteceu após a morte de Michael Brown e de Eric Garner, é a reforma do sistema de júri de instrução. Os júris foram instituídos na Grã-Bretanha, nos séculos 12 e 13, um vestígio de um tempo em que as pessoas precisavam ser protegidas de condenações injustas do rei e de outros.

Na época, havia a necessidade do sigilo – que não precisa ser aplicado aos casos que envolvem a má conduta da polícia. As audiências preliminares nos tribunais é que determinarão se um caso deverá ser levado a processo.

Além disso, os casos em que os policiais fazem uso das armas deveriam ser totalmente separados dos júris de instrução locais, porque essas instâncias não podem tratar de crimes que envolvam a polícia local da qual dependem diariamente para a própria segurança.

Os júris especiais deveriam ser convocados para incidentes relativos à polícia e organismos independentes devem reunir provas antes mesmo de eles se reunirem, referentes à época dos conflitos com a polícia em que tenha ocorrido uma morte. As provas colhidas naquele momento definirão se haverá um processo e se ele será justo, com base nos fatos.

Abusos. Todas essas ideias precisam ser levadas adiante sob a condução de nosso presidente, de nossos governadores, dos prefeitos das principais cidades e dos que estão encarregados da preservação da lei e da ordem. Se não aproveitarmos esse momento que a história oferece, estaremos fadados a novos abusos, novas divisões e a um caos ainda maior.

Quando meu filho tinha 15 anos, foi detido pela polícia em um cinema sem nenhuma razão aparente. Ele mostrou a identidade e disse que era filho de um capitão de polícia aposentado e senador estadual. A resposta foi: “E daí?”

Não importa – nem deveria importar – quem ele é. Ele não deveria ter de passar por essa experiência. Enquanto isso não mudar para todos os negros, jamais haverá uma verdadeira mudança nos EUA. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

*É OFICIAL APOSENTADO DO DEPARTAMENTO DE POLÍCIA DE NOVA YORK

 

Fonte: Estadão

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