Maquiar ator branco com tinta preta é uma forma de racismo? Sim

“A historicidade do blackface não é a absolvição do racismo que carrega, ao contrário, é justamente o que permite compreender o quão ofensivo é e o motivo pelo qual deve ser combatido nos palcos contemporâneos”, diz Rebeca Campos Ferreira.

por Rebeca Campos Ferreira no Época

Não se trata de teatro ou arte, tampouco de uma crítica teatral. Trata-se de racismo no teatro. E racismo é crime, teatro é arte. Eles não podem estar juntos.

O blackface é uma técnica de maquiagem teatral, na qual pessoas brancas pintam-se de negras para imitá-las de forma caricata, o que reforça características físicas, estereotipando-as com o intuito de fazer piadas. Uma ferramenta utilizada no teatro, no cinema e, lamentavelmente, muito comum no carnaval.

A historicidade do blackface não é a absolvição do racismo que carrega, ao contrário, é justamente o que permite compreender o quão ofensivo é e o motivo pelo qual deve ser combatido nos palcos contemporâneos. Quando se pensa na origem histórica desta prática, vê-se que o racismo sempre a embasou.

Chamando-o de “máscara do negro” da Commedia Dell’Arte, passando ou não por Othello de Shakespeare, até consolidar-se nos shows de menestréis estadunidenses do início do século XIX, o blackface foi amplamente utilizado por comediantes que tiravam risos do seu público-alvo – a aristocracia branca escravocrata – ao representar a negritude de forma distorcida, exagerada e jocosa. Na segunda metade do século XX, o blackface caiu em desuso e se transformou em instrumento de combate ao racismo.

leia o caso: Companhia de teatro usa blackface e é acusada de racismo

Por isso, é com tristeza e indignação que se vê tal prática retornar aos palcos, tirar risos que naturalizam o que está nela impregnado: o racismo. O blackface, voltando ao cenário e trazendo retratos caricatos de indivíduos negros, reforça estereótipos e discrimina. Quando se analisa o enredo da peça “A Mulher do Trem” – um Brasil pequeno burguês e bonachão, tendo a sala de visitas de uma família de classe média como cenário, no qual vão e vêm personagens tipo-ideais – os problemas ficam ainda mais latentes: atores brancos representam atores negros, carregando o  tom com o deboche e o escárnio. Vale citar: o blackface é utilizado na representação dos empregados.

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Após tantas lutas do movimento negro, das atrizes e atores negros em um cenário de protagonismo ainda em construção, o retorno do blackface é, no mínimo, um retrocesso perverso. Seria cômico, mas é trágico.

Embora não seja o objeto da presente reflexão, a representação dos negros nos palcos deve ser pensada. Por que não um ator negro? Por que negros não podem se representar? Por que quando ocupam estes espaços ainda o fazem em determinados papéis que reforçam estigmas? Vide novelas, nas quais a mulher negra é a empregada doméstica ou a passista da escola de samba, o homem negro é o morador do subúrbio ou o malandro ou o ladrão. Por que ainda não temos o protagonismo do negro nos palcos, nas telas, na sociedade?

O blackface renova o preconceitos, essencializa estereótipos e é uma forma de exclusão, uma vez que opera ao negar espaços a atores negros. Blackface é opressão que longe de ser uma forma de humor, é uma forma racista que, se hoje é mais sutil, não é menos ofensivo. É mais um mecanismo de discriminação.

As linhas entre a arte e o racismo, o humor, a liberdade de expressão e o preconceito são, de fato, bastante tênues. Mas não se pode ignorar que essas performances do blackface desempenharam papel importante em consolidar e proliferar imagens, atitudes e percepções racistas no mundo e não deveriam encontrar adeptos hoje em dia.

Uma ferramenta que ridiculariza o negro por meio de uma caricatura exagerada e não permite que negros possam representar a si mesmos não deveria ser aplaudida em pleno 2015. Enquanto prática racista, o blackface não pode ser naturalizado ou encarado como humor. Porque nenhuma forma de discriminação deve ser tolerada ou justificada pela arte, pois a arte serve para combatê-las e tem papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

*Rebeca Campos Ferreira, doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Perita em Antropologia, Ministério Público Federal – MPF / RO

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