Claudinha, uma empregada doméstica

Era abril de 1992. Eu, um jovem de vinte e poucos anos, era pai. E encararia a partir daquele momento uma nova realidade de vida. Acostumado a viver em repúblicas, ter passado um tempo no Crusp e a dividir apartamentos com amigos, iria ter um lar organizado. Papai, mamãe e filinha. E por conta de mãe e pai trabalharem o dia inteiro, seria adequado ter uma empregada doméstica. Era possível. E então passamos a procurá-la.

Uma das pessoas que se dispôs a nos ajudar, um pouco constrangida, afirmou.

– Eu tenho uma prima lá da Bahia e posso trazê-la para cá, mas teria de ser pra morar porque ela não tem onde ficar. Acontece que tem um problema..

– Qual problema, perguntei

– Ela é preta. Não sei se o senhor se incomoda. Tem gente que não gosta. Mas ela é limpinha, educacada, honesta, boa pessoa…

Claro que depois de 22 anos o diálogo pode ter uma ou outra imprecissão. Mas o tom foi este. E antes que isso passe batido, vale o registro. A pessoa do diálogo acima era uma faxineira. E preta.

Depois de uns dois meses, Claudinha apareceu em casa. Uma garota de uns 19 anos, negra, magra e que demorou um bom tempo pra trocar algumas palavras conosco, mesmo sendo estimulada diariamente para isso.

Parecia ter sido aconselhada a ficar calada e a fazer tudo que lhe fosse pedido. Parecia ter medo..

Foi tudo muito estranho, mas as pessoas garantiam que era normal.

E as falas de muitas eram mais ou menos assim:

– Quando elas vem do Norte, são assim mesmo. Parecem uns bichinhos, mas depois melhoram….

Ou assim:

– Melhor desse jeito. Você quer que ela fale pra que se não vai se aproveitar nada.

Ou ainda:

– Vai ver que ela não sabe falar (risos). Mas enquanto estiver assim, ao menos não vai arrumar namorado.

Depois viria a descobrir que a questão do namorado era também um tema importante nas conversas sobre o comportamento das empregadas domésticas. Alguns comentários acerca do tema eram neste tom:

– Eu sempre digo para as minhas empregadas. Se arrumar namorado, tá na rua. Como vou ficar com alguém dentro de caso se não sei com quem ela tá ficando. E se o cara é um bandido? E se ele rouba a chave dela…Deus me livre…

Mas o que mais deixava alguns dos meus interlocutores irritados era quando dizia que  Claudinha era registrada.  E ganhava 1,5 salário mínimo.  O que eu achava pouco, mas era o que podia pagar.

Aquilo era entendido quase como uma ofensa. Alguns chegavam ao ponto de me chamar de maluco. E para mostrar que não agia com sabedoria, registravam:

– Você tá armando a  própria cova. Depois ela sai daqui e tem provas de que trabalhou contigo. E arruma alguém como testemunha e vai cobrar todos os direitos. Anota o que eu tô te falando. Conheço um monte de gente que já passou por isso…

Mas eu pagava todos os direitos. Era o que sempre respondia. Não adiantava. Havia uma certeza de que aquilo era algo que ainda iria se voltar contra mim no futuro.

No fim do nosso contrato, expliquei tudo o que ela tinha direto e fiz o pagamento. Nada me foi questionado por Claudinha. Naquele dia fiquei triste. Até porque ela tinha se tornado alcoólatra e não tínhamos mais como deixá-la à sós com a criança que ainda precisava de cuidados enquanto não estava na escolinha.

Talvez de forma inocente passei boa parte dos últimos anos achando que muitos daqueles preconceitos tinham ficado lá nos idos dos anos 90.

Ledo engano.

Nos últimos dias tenho lido e ouvido coisas muito piores.

 

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Fonte: Revista Fórum

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