A absurda melodia das crianças mortas

Uma menina igual a mil/ Que não está nem aí/ Tivesse a vida pra escolher/ E era talvez ser distraída o que ela mais queria ser. (“Uma menina”, Chico Buarque de Holanda)

por Sylvia Debossan Moretzsohn, do Observatório da Imprensa

 

A menina distraída, homenageada na canção de Chico Buarque, se chamava Estela Márcia Vieira. Tinha 13 anos e morreu atingida por uma bala na cabeça, numa troca de tiros entre policiais e traficantes no morro do Tuiuti, em São Cristóvão, em julho de 1987, no Rio. O episódio foi um marco para a substituição do então secretário de segurança do governador Moreira Franco, aquele que se elegeu prometendo acabar com a violência em seis meses.

Naturalmente, Estela não foi a primeira, e depois dela viriam muitos outros meninos e meninas.

Por exemplo, Alana Ezequiel, 12 anos, que acabara de deixar a irmã na creche e foi morta durante uma operação policial no morro dos Macacos, em Vila Isabel, em março de 2007.

Ou Matheus Rodrigues Carvalho, 8 anos, que saía de casa de manhã para comprar pão, na Baixa do Sapateiro, uma das favelas da Maré, e foi atingido no pescoço por um policial, em dezembro de 2008.

Ou Juan Moraes, 11 anos, que desapareceu em 20 de junho de 2011, durante uma operação policial na favela Danon, em Nova Iguaçu. Foi morto e jogado num rio. O corpo apareceu dez dias depois.

Ou Alan Souza de Lima, 15 anos, alvejado por tiros disparados por policiais na favela da Palmeirinha, em Honório Gurgel, em fevereiro de 2015. “Tá correndo por quê?”, perguntou um policial, no vídeo em que o rapaz filmava a brincadeira da qual participava, e acabou documentando a própria morte.

Eduardo de Jesus Ferreira foi o caso mais recente. Aos 10 anos, morreu atingido por um tiro de fuzil na cabeça, quando brincava com seu celular, na porta de casa, numa das favelas do Complexo do Alemão.

Confusões, nos jornais e nas redes

Foi a quarta morte em cinco dias de conflito na região, que vem sofrendo com tiroteios diários há meses, embora tenha sido declarada “pacificada” depois da instalação de UPPs.

O assassinato do menino se tornou simbólico, além do mais, por algumas coincidências: por se chamar Eduardo de Jesus e ter sido vitimado na véspera da Sexta-Feira Santa; por morrer no mesmo dia do filho caçula do governador de São Paulo, num acidente de helicóptero, e de uma advogada, atingida numa troca de tiros num shopping da Tijuca; e por morrer no momento em que a Comissão de Constituição de Justiça da Câmara aprova a proposta de redução da maioridade penal.

No Rio, apenas os jornais populares – O Dia e Extra – deram o devido destaque de primeira página à morte do menino. O Dia, entretanto, associou-a à da mulher no shopping, sob uma mesma manchete genérica: “Violência castiga a Zona Norte”. Assim, nivelou e ao mesmo tempo apagou os agentes dessa violência. Pois, por mais que resulte em igual tragédia, não é comparável a situação fortuita de um assalto que resulta em indevida e fatal troca de tiros com o risco e a tensão permanentes vividos por quem mora em favelas.

Na internet, produziu-se o previsível festival de barbaridades nos comentários sobre os três episódios. Ao traçar o perfil da mulher morta, uma advogada empenhada na causa dos direitos humanos e na militância em movimentos sociais, a reportagem do Globo recebeu manifestações entre o deboche e a raiva, resumidas em frases como “bem feito”, “é isso que dá defender minorias e menores marginais”. Nas mídias sociais, circulou a foto de um menino empunhando um fuzil – o típico “deus de bermuda e pé de chinelo” dos versos de Aldir Blanc (ver aqui) – como se fosse o garoto morto, como a dizer que ele teve o que mereceu.

Um garoto de 10 anos com armamento pesado: quem sabe aí não estaria um indício da idade “correta” para a responsabilização penal?

Não, não era o menino. Mas se fosse? Mereceria?

As eternas questões de classe

Houve quem tripudiasse da dor da mãe do garoto e houve quem fizesse o mesmo, em contrapartida, em relação à família do governador de São Paulo. Foi o que motivou o jornalista Luiz Caversan, no site da Folha de S.Paulo (4/4, ver “Eduardo ou Thomaz: qual dor é maior?”), a se insurgir contra o achincalhe. Teve razão ao protestar contra o absurdo de se comparar a dor de pais que perdem filhos. Mas, se perguntasse qual morte – portanto, qual vida – é mais relevante, não teria dúvida: a edição dos principais jornais, entre os quais a própria Folha, fornecia a resposta.

Mais preciso foi o jornalista Mário Magalhães, no mesmo dia, em seu blog no UOL (ver “Se o menino Jesus, 10, fosse morto em Ipanema, haveria comoção nacional”), ao mostrar como a imprensa aproveitaria as coincidências – o menino Jesus, a mãe Maria, a Semana Santa, o sacrifício – caso o crime tivesse ocorrido em Ipanema. Bastaria recordar a célebre declaração do próprio secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, em 2007, de que uma coisa é um tiroteio na (favela da) Coréia, outra é um tiroteio em Copacabana.

A propósito, justamente em Copacabana, a ONG Rio da Paz promoveu o enterro simbólico desse e de outros meninos vítimas da mesma violência. Obteve espaço nos jornais e TVs, mas não reuniu mais que 50 pessoas. “A classe média não pode mais assistir passivamente ao que acontece na favela”, disse o líder do movimento.

Se apenas assistisse passivamente, não seria tão grave.

A desqualificação dos protestos

As manifestações dos moradores do Alemão, no fim de semana, ganharam mais destaque nos dois jornais paulistas do que no Globo, que só lhes dedicou pequena chamada de primeira página, sem foto. Mais uma vez, ocorreu um reprovável episódio de hostilização contra jornalistas da grande imprensa – no caso, da GloboNews, que realizava uma cobertura correta mas não pôde permanecer no local.

Na internet, não faltaram comentários sobre a falta de faixas de protesto contra os traficantes. Comentários tão irônicos quanto tolos, pois é óbvio que os moradores jamais vão se expor dessa forma. O problema é o tipo de ação policial que, no combate ao tráfico – melhor: na sua guerra ao tráfico –, despreza os chamados “danos colaterais”.

Houve também quem desqualificasse os protestos, com base numa prática recorrente da marginalidade: “Toda vez que a pressão [da polícia] fica insuportável o chefe da bandidagem manda acertar criança, velho ou mulher para mobilizar a comunidade e a imprensa covarde; em seguida a polícia alivia ou sai! Sejam repórteres, não porta-vozes!”, exortou um jornalista.

Seria mesmo interessante que os jornalistas deixassem de ser porta-vozes. Pois até agora tudo o que fizeram, com as raras exceções de praxe, foi enaltecer o projeto das UPPs, superando o mais zeloso e publicitário assessor de imprensa.

Os cuidados esquecidos

No longínquo ano de 1986, quando assumiu a secretaria da Polícia Civil, o advogado Nilo Batista distribuiu nota sobre as normas para a atuação de policiais em operações especiais de rua: normas que já constavam da legislação, mas eram sistematicamente descumpridas. O Globo as reproduziu na íntegra, em 31/7/1986. Um dos itens diz:

“O uso da força está limitado pela legalidade, pela necessidade e pela conveniência. (…) só se emprega a força legal e necessária quando não haja risco de danos sociais indesejáveis. A morte ou ferimento acidental de um inocente não compensa a prisão de um culpado. Também no serviço policial, os fins não justificam os meios”.

Em outra passagem, Nilo afirmava:

“O poder de polícia, como todo poder num estado democrático, provém do povo e em nome do povo é exercido. O cidadão pode às vezes não compreender esse poder legal e irritar-se ou desmandar-se. O policial não pode. A serenidade é a primeira virtude do policial que apreendeu o sentido social de sua profissão”.

Mas estávamos no governo Leonel Brizola, que investia numa mudança de cultura na formação de policiais, com o empenho do então comandante da PM, coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Um governo, como se recorda, intensamente combatido pelas Organizações Globo e derrotado na eleição seguinte, que deu a vitória àquele que iria acabar com a violência em seis meses.

Mais tarde viria Sérgio Cabral e a primeira grande investida no Alemão, em 2007, com uma operação conjunta com o governo federal, que resultou em dezenas de mortos, 19 num só dia. O Globo manchetou as declarações de Cabral – a população teria de se acostumar ao “estresse da guerra” – e do presidente Lula, para quem não se combatia “a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó de arroz”. Impossível clareza maior na senha que dá a licença para matar.

Depois viria outra operação no Alemão, em 2010, para a “retomada do território” e a anunciada “vitória definitiva” sobre o tráfico. Todo esse discurso encampado e alardeado pela mídia, que vibrava com aquele “dia histórico para o Rio de Janeiro”. Todo esse discurso bélico, que não pode produzir nada além do ódio.

Desde pelo menos maio de 2013, quando um tiroteio atrasou o início da corrida “Desafio da Paz”, no Alemão, uma sequência de conflitos flagrantes exigiria o abandono do discurso de propaganda e o investimento na apuração séria sobre os problemas enfrentados pela política das UPPs. Mas apenas agora, em reportagem do Fantástico (5/4), foram exibidas as condições de trabalho dos policiais que atuam nesse setor: a precariedade dos contêineres, que deveriam ser provisórios, com banheiros imundos, colchões rasgados e sem estrutura para proteção no caso de um ataque, e a falta de treinamento no uso das armas.

Uma história de segregação

Falta de treinamento, que é diferente do sentido mais geral da falta de preparo, considerando o papel histórico da polícia no Brasil, apesar das breves e esquecidas iniciativas dos governos Brizola.

O texto da jornalista Manuela Trindade, a Manu da Cuíca, publicado em seu mural no Facebook, é uma das melhores sínteses do estado em que vivemos:

“São tantas e tantas mortes na favela que a gente mistura nomes e idades, como se cada um não fosse uma pessoa, não tivesse uma história, um time de futebol, uma escola de samba, um vício, um prato preferido, um jeito próprio de rir e de ficar irritado, um apelido, um medo qualquer. E não têm, pro Estado não têm.

“São só pobres, favelados, tratados como cidadãos de segunda categoria a cada dia em que estiveram vivos. Tratados como insetos no momento em que são assassinados. Alguns pela polícia, outros pelos tiros disparados no meio do conflito de combate às drogas fantasiado de ‘política de segurança’. Todos pelo Estado.

“Morrem não porque a polícia é mal preparada, ela é preparada pra fazer o que faz todos os dias: entrar na favela pra matar. Todos os dias. Todos, saindo ou não nos jornais. Um traficante, um suspeito, uma criança parada, uma senhora saindo de casa, um motoboy, um adolescente brincando de correr. Cada um com uma história, um time de futebol, uma escola de samba, um vício, um prato preferido, um jeito próprio de rir e de ficar irritado, um apelido, um medo qualquer. Que o Estado transforma em insetos, pisa, esmaga e depois solta uma nota por meio da assessoria de imprensa lamentando o acidente.

“Rio: 450 anos.”

Até quando?

Finalmente, na segunda-feira (6/4), O Globo concedeu espaço com foto na primeira página à reportagem que mostra o número de crianças mortas por policiais no Rio: 50 nos últimos dez anos, o maior índice nesse campeonato nacional de extermínio (ver aqui).

Trata apenas de crianças e adolescentes até 14 anos. Se apresentasse o quadro mais amplo, como consta do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reproduzido em artigo de Luiz Fernando Vianna também na segunda-feira, na Folha de S.Paulo,  o impacto seria maior: 11.197 pessoas mortas pela polícia no país, entre 2009 e 2013. E 1.770 policiais mortos, no mesmo período.

Depois de quatro mortes em cinco dias, o governador Luiz Fernando Pezão anunciou que o Alemão será reocupado pela PM, que já monta suas barricadas com tonéis cheios de concreto, à maneira do tráfico. “Vamos entrar mais fortes”, prometeu.

Quatro mortes em cinco dias. E entrarão ainda mais fortes.

Ocioso dizer que não passa pela cabeça de ninguém a eliminação do tráfico através da legalização das drogas.

Até quando continuaremos a entoar esta absurda melodia?

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

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