A autonomia e a resistência das favelas do RJ pra driblar o coronavírus

Desamparadas pelo poder público, as comunidades enfrentam o abuso de poder de milicianos e facções, além da falta de água e do desemprego.

Por Débora Lopes, Da Vice

(Foto: José Raphael Berrêdo / G1)

O padeiro não faz home office. A empregada doméstica não é dispensada pela patroa. Nem a babá. O camelô não pode parar de ir pra rua e o comércio dentro do morro também não pode fechar porque a milícia não deixa. A quarentena pode não chegar até a favela, mas o novo coronavírus já chegou. Segundo a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro, havia 61 casos suspeitos de Covid-19 nas comunidades até a última segunda (23). Para sobreviver, os moradores precisam driblar muita coisa: a pandemia, a falta de água, de dinheiro, as milícias, as facções e o descaso das autoridades.

“As favelas são esquecidas pelo poder público. Quem cuida das favelas somos nós mesmos”, pontua Zé Mário dos Santos, presidente da Associação de Moradores do Morro da Santa Marta. Na região, a Defesa Civil toca uma sirene alertando a todos sobre o coronavírus e pedindo para evitar aglomerações. Mas como evitar aglomerações sendo que a favela, em si, é uma grande aglomeração de pessoas? Inclusive, o termo técnico para classificar favelas no IBGE é “aglomerados subnormais”.

Nos últimos dias, lideranças de comunidades do Rio escancararam com maior ênfase nas redes sociais a dura realidade da quebrada e os problemas diários enfrentados pela população. Antes de falar de álcool gel, é preciso abordar algo muito mais básico: água. Muitas favelas ficam dias ou semanas sem ver uma gota d’água sair da torneira. Comprar água é um luxo. A situação de desemprego e de afastamento dos trabalhadores informais das suas atividades acarreta também na falta de dinheiro. O Instituto Data Favela fez uma pesquisa sobre o impacto do coronavírus nas comunidades, ouvindo moradores destes territórios de todo o Brasil. Os dados apontam que 97% das pessoas já mudaram sua rotina por causa da pandemia e 78% conhece alguém na favela que já teve diminuição de renda pelo mesmo motivo.

Outro ponto importante e inevitável são as milícias, que comandam boa parte das comunidades no Rio de Janeiro. “Pra gente poder atuar na prevenção do coronavírus, temos que pedir autorização pra milícia pra fazer tudo de acordo”, disse à VICE um morador que prefere não ser identificado. Ele fala que é preciso evitar a fadiga com os milicianos porque “pode gerar um conflito onde alguém some, alguém morre, alguém toma um tiro”.

Os órgãos oficiais não conseguem atuar nas favelas dominadas por milícias com a força que atuam no centro da cidade. “A atuação política das milícias não deixa a prefeitura, por exemplo, fechar as guaritas, os bares. Porque eles [milicianos] recebem o dinheiro de segurança. A milícia recebe 20 reais por semana do comércio. Se os comércios da favela fecharem, a milícia não recebe”, diz o morador.

“A milícia recebe 20 reais por semana do comércio. Se os comércios da favela fecharem, a milícia não recebe”

Em reportagem publicada na terça (24), o Extra afirma que milicianos e traficantes passaram a ordenar toque de recolher nas favelas, ameaçando moradores que continuam circulando após as 20h.

Se não fosse a resistência e a autonomia dos próprios moradores, a tentativa de prevenção estaria muito mais difícil. Tanto é que a própria comunidade está fazendo de tudo para mitigar a disseminação do vírus: arrecadações de dinheiro, alimentos, podcast, panfleto, funk, exposição de faixas.

MC Tchelinho, mestre de cerimônias da Heavy Baile, lançou um funk falando sobre a importância de ficar em casa, enfatizando as normas de higiene recomendadas pela OMS. “Não vou pra aglomeração, pro pagode ou pro bailão. Daqui a pouco tá tranquilo pra voltar a curtição”, traz a letra do “Corona Funk”, que já soma 26 mil visualizações no YouTube.

No Complexo do Alemão, que chegou a ficar semanas sem água, faixas de conscientização foram instaladas em diversos pontos. “Fazendo o máximo para construir a nossa prevenção em meio a desigualdade social desse país”, publicou no Twitter Raull Santiago, fundador do Coletivo Papo Reto.

Já agências de notícias voltadas para a temática racial e periférica têm unido forças para produzir conteúdo pertinente: Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola e Periferia em Movimento lançaram um boletim em formato de podcast chamado Pandemia sem Neurose. “Se não tem álcool, pode limpar com água e sabão que vai dar tudo certo”, explicam no programa. Eles abordam o cenário político, passam informações relevantes para a comunidade e combatem fake news que circulam no WhatsApp, como uma corrente que afirmava que o governo estava abrindo inscrições para o Cadastro Cidadão – um golpe.

A CUFA (Central Única das Favelas), que atua nas favelas de todo o Brasil, lançou uma Vakinha pra levantar R$ 200 mil e ampliar o combate ao coronavírus. Para dar força à campanha, artistas como Péricles, Edi Rock (Racionais), Dudu Nobre, Sandra de Sá, Xande de Pilares e Karol Conká gravaram a música “O Mundo Parou”, e o clipe oficial chegou a ser veiculado no Fantástico, da Rede Globo, no último domingo.

Rafael Oliveira, coordenador do Coletivo Favela Vertical, diz que as lideranças não estão medindo esforços. “Estamos espalhando cartazes de porta em porta porque, infelizmente, as pessoas da favela precisam trabalhar, já que muitos são autônomos, são terceirizados de empresa de limpeza, de hospitais.” Mesmo com a conscientização, é difícil frear a sociabilidade dos moradores, ele conta. “As pessoas saem estressadas do trabalho e acabam ficando em bares, tentando se distrair.”

O duro é enfrentar tanta dificuldade. “Ainda tem esse grande empecilho nas favelas do Rio de Janeiro: as pessoas não têm acesso a saneamento básico. As pessoas não podem lavar as mãos pra fazer o básico contra o coronavírus, que é a higienização com água e sabão”, diz o ativista.

Moradora do Morro do Cruz, Thamires Figueiredo, 22, relata que a falta de água impacta 100% na rotina da família e nos costumes de higiene. Seu pai costuma fazer reservas de água para que a família consiga, pelo menos, lavar a louça e tomar banho. “Mas tudo muito regrado, utilizando o mínimo. A sensação, às vezes, é que a gente é realmente largado às traças”, desabafa.

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