A caridade é branca. A dor é PRETA.

Oi minha querida neta, tudo bem com você¿
Sim! Estou bem meu avô, e por aí como anda as coisas¿
Bem! Muito bem, estou ligando para saber sobre você, como tem passado o dia de hoje¿ Está melhor que ontem¿
Sim, estou sim! Meu corpo está bem melhor, já não sinto as dores que no início pareciam não ter fim… estou indo bem, obrigada.

Jogamos conversa fora, falamos da situação da cidade de Franca interior de São Paulo que, desde final de maio decretou lockdow. Todas as lojas fechadas, postos de conveniências, supermercados, bares, tudo… Isso é para conseguir amenizar a situação causada pelo Covid-19 na cidade. Muito saudosista, em nossas conversas, sempre fala do passado com desejo de quero mais, poderia voltar como anteriormente éramos… saudade dos militares na rua, você iria ver minha neta como nada disso estaria acontecendo… e a conversa se estende, sou todinha a ouvidos, estou do outro lado da linha escutando. Às vezes interrompo dizendo… Meu avô não é bem assim… Mas a necessidade dele de conversar sobre o “melhor da vida” é tanta que deixo falar. 

Ele troca de assunto tão rapidamente e eu fico escutando, ainda do outro lado da linha… Daí, do nada vem com a minha história, outra saudade que ele carrega necessidades, não sabe… Minha neta, você sabe de toda sua história, me lembro como se fosse hoje, eu naquela estrada. Ganhei você na estrada, os meus guias já falavam isso para mim, mas como eu apareceria em casa com um bebê nos braços, e ainda, uma criança preta¿
Não foi dias fáceis, fiquei com muita pena daquela negrinha que entregava você para mim, ela havia me pedido apenas para que não trocasse seu nome, sim, mantivemos. Aline.

Oi, minha neta, não se esqueça, é graças a mim que você está salva. Graças a mim, que hoje você tem uma vida digna, uma vida a qual não pudera imaginar. Seja bem-vinda a sua família. Seja grata sempre!

Chamo-me Aline, nasci em São Joaquim da Barra interior de São Paulo. Fui adotada aos quatro meses de vida por uma família branca na cidade de Franca, apenas soube da minha adoção aos oito anos de idade por conta de uma vizinha. Ela sempre me chamava de bruxinha. Um belo dia resolveu me contar sobre quem eu era, e que eu, euzinha, não era igual meus irmãos e muito menos parecia com meus pais, quem eu era¿ Há anos me perguntei quem eu era quem era aquela pessoa que alisava diariamente os cabelos para parecer com alguém dali, aquela pessoa do traço fino demais para ser preta, a morena da família, ouvia isso sempre, quem eu era¿ Hoje, com meus 34 anos de idade, freqüentando a excelente Universidade de São Paulo – USP, cursando Pedagogia no campus de Ribeirão Preto, com minha filha de dez anos de idade, com um casamento inter-racial há onze anos, com referência negra que pude ter após minha vida adulta, hoje eu sou, de toda certeza, essa mulher negra, esse corpo negro, e isso tem conseqüência.

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