A ciência chama a minha mãe de HeLa, diz Deborah Lacks

Leio o instigante livro de Rebecca Skloot, “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”, presente de uma amiga, Valéria Augusto, cujo resumo diz: “Em 1951, uma mulher negra e humilde morre de câncer; suas células – retiradas sem seu consentimento – são mantidas vivas, dão origem a uma revolução na medicina e a uma indústria multimilionária. Mais de 20 anos, depois, seus filhos descobrem a historia e têm suas vidas completamente modificadas”. Parece ficção, mas aconteceu.

por Fátima Oliveira

Ouçamos Deborah Lacks, filha de Henrietta Lacks (18.8.1920 – 4.10.1951): “A ciência chama a minha mãe de HeLa (pronúncia: rilá), e ela está no mundo inteiro em centros médicos…

Quando vou ao médico, sempre digo que minha mãe foi HeLa. Eles ficam empolgados, contam coisas do tipo como as células dela ajudaram a produzir meus remédios para hipertensão e antidepressivos e como todas essas coisas importantes da ciência aconteceram por causa dela… Mas sempre achei estranho que, se as células da nossa mãe fizeram tanto pela medicina, como é que a família dela nem tem dinheiro para pagar um médico? Não faz sentido. As pessoas ficaram ricas às custas de minha mãe e a gente não recebeu um centavo…”.

Henrietta descende de escravos plantadores de fumo. Teve cinco filhos. Nenhum transpôs as soleiras da universidade. Não possuem seguro-saúde. As células HeLa – do carcinoma epidermoide do colo de útero dela, extraídas por seu médico Howard Jones, em 6.2.1951 – se reproduziram “in vitro” no laboratório de cultura em tecidos do Hospital Johns Hopkins, um dos raros que atendiam negros, mas os segregava em enfermarias de “pessoas de cor” . Estima-se que as células HeLa, enfileiradas, dariam três voltas ao redor da Terra.

Rebecca Skloot conheceu as células HeLa em 1988, aos 16 anos, numa aula do professor Donald Defler, que disse: “As células HeLa foram uma das coisas mais importantes que aconteceram à medicina nos últimos cem anos. Era uma mulher negra”. Rebecca indagou: “De onde ela era? Sabia da importância de suas células? Teve filhos?”. Ele disse: “Eu bem gostaria de poder lhe contar, mas ninguém sabe nada sobre ela”.

Foi a obsessão por ela que levou Rebecca a escrever o livro “contando a historia de Henrietta Lacks e das células HeLa, abordando aspectos importantes sobre ciência, ética, raça e classe”. Sobre a foto de Henrietta, diz: “Passei anos contemplando-a, indagando que tipo de vida a retratada levava, o que teria acontecido com seus filhos, o que acharia de células do seu colo de útero vivendo para sempre – compradas, vendidas, embaladas e expedidas aos trilhões para laboratórios de todo o mundo”.

Ela e Deborah Lacks, muito mística, ficaram amigas: “Como explica que seu professor de ciências sabia o verdadeiro nome dela, quando todos os outros a chamavam de Helen Lane? Ela estava tentando chamar a sua atenção”. Era uma dedução de Deborah aplicável a tudo de Rebecca: ao casamento (ela quis que alguém cuidasse de você enquanto escrevia sobre ela); ao divórcio (ela viu que ele estava atrapalhando o livro); e, quando um editor insistiu em suprimir a família Lacks do livro, feriu-se num acidente misterioso, “Deborah disse que aquilo era o que acontecia com quem irritasse Henrietta”.

É um livro que dói. Revela subterrâneos sombrios da produção da ciência e a necessidade de novo contrato social e ético entre ciência e sociedade; para além de maquiagens bioéticas, exige meios reais de contenção de abusos.

Fonte: O Tempo

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