Sete meses após perder a irmã para a Covid-19, Criolo não consegue responder se vai bem: “Não sei como vou. Eu só vou”. O cantor segue a vida se recusando a aceitar a morte dela e descarrega a revolta na música — como fez na letra de “Cleane”, lançada em setembro, em parceria com o duo Tropkillaz. A canção foi batizada com o nome da irmã, mas homenageia cada um que não resistiu à doença. A dor também está estampada na cara de seus pais, que aparecem no clipe da música.
“Cleane” se juntará a dois outros singles recentes, “Sistema obtuso” (em que Criolo fala sobre aquecimento global e queimadas na Amazônia) e “Fellini” (uma forte crítica social), no repertório do novo disco do artista de 46 anos, nascido e criado na periferia paulistana. “Diário do caos” sai do forno em março e marca um retorno mais efetivo do músico ao rap, após ter estreitado laços com ícones da MPB (gravou disco com Milton Nascimento em 2020) e feito uma incursão pelo samba com o elogiado álbum “Espiral de ilusão” (2017).
Mas o novo projeto não é tão “volta às raízes” assim. Ele aponta para a frente trazendo as primeiras experimentações de Criolo no universo do trap. O début do repertório ao vivo acontecerá no dia 19 de março, quando o músico dá o pontapé inicial da turnê do álbum no Verão Tim, festival idealizado por Rafaello Ramundo, com shows gratuitos na Praia de Ipanema. Criolo se apresentará ao lado de Liniker num dos encontros propostos pelo diretor artístico Zé Ricardo (os outros são Seu Jorge e Ludmilla, Xamã e Iza).
Com o cabelo repleto de cachos que não deixava crescer há 15 anos, o artista recebeu o GLOBO para uma conversa em que relembra memórias carinhosas que guarda da irmã, diz que a dor do outro o levou a alterar palavras como “traveco” em uma canção e que sua sexualidade não é um assunto.
Como lidou com a emoção de gravar o clipe de “Cleane” com seus pais?
Foi difícil vê-los segurando até o último segundo a cena eles. Porque a gente vai escutando a letra e ligando lé com cré. As pessoas foram se emocionando e segurando a onda para que o trabalho acontecesse. Quis colocar o nome da minha irmã como se o de todo mundo que se foi estivesse ali. É um documento. Quando alguém assim se vai, vai o nosso eu também. Nunca mais vou ser o irmão da Cleane, morri também (respira fundo e chora). Por isso dói tanto. Quando falam “parece que foi um pedaço meu”, foi mesmo.
A que memórias da sua irmã você recorre em meio ao luto?
Éramos alunos de um projeto social e tinha aula de circo. Ela era contorcionista. Lembro dela pequenininha, magrela, fazendo as aulas, aquele cabelo… A gente chamava ela de Elba Ramalho, que tem aquele cabelão bonito. Uma vez teve o show dos 30 anos dos Racionais Mcs e tive a honra de ir ao camarim. Vou andando e vejo a minha irmã, que me chama e diz assim: “Fala pra cantar direitinho que separei esse dia na agenda”. Eu disse: “Pode deixar, irmã” (risos). Era dessas “mulé” despachada, amorosa, e também alvo de muitos preconceitos da sociedade. Espero pode honrá-la sempre quando cantar essa música (chora).
Pelos singles, em que você canta sobre morte, destruição do planeta, genocídio da população preta, vem aí um disco com forte discurso. Como ele reflete sua visão do Brasil hoje?
Por mais que tentem amassar nossa alma, o povo brasileiro se esparrama de sentimento. Quero me refazer em cada palco, que essa energia seja jogada ao planeta, para a gente se amar e cobrar mais. Vai ser vai ser dilúvio de afeto, amor, votos de fé. A dor que foi perder minha irmã, o jeito que foi, eu não aceito. Ver a dor da minha mãe e como ela sonhou em ter uma filha mulher… Nem sei se eu vou ter força na alma para um dia cantar sobre isso. É também um alinhavar da nossa rotina. Ver nossa fragilidade… Somos uma potência econômica, exportadores de alimentos, não era para as pessoas passarem fome nesse país. “Diário do caos” é dividir esse íntimo da minha família e questionamentos como: “Precisa ser assim?”. Porque se já não era escancarada as humilhações que nosso povo passa, quando veio essa crise de saúde… O que mais precisa?
Como se salva diante de um mundo em decomposição?
Desabafando na música. E com o silêncio que não te critica. Se colocou a vírgula no lugar errado, ele te dá tempo para entender. Somos muito solitários, né? Por isso que o pacote de dados vende tanto. Nos ensinaram a não acreditar no outro, a não confiar. Somos filhos órfãos de uma terra sem dono, que foi sucateada e jogada à sorte das caravelas. Minha mãe fala assim: “Como querem que a gente traga solução para um mundo emprestado?”. Cobram da gente a solução de um mundo de segunda mão. Quem tem grana compensa comprando eletrodoméstico.
Mas além da dureza, você também pôde ecoar delicadeza no “Samba Em Três Tempos”, uma espécie de filme-concerto, dirigido por Monique Gardenberg. Foi legal fazer esse projeto?
Foi delicado porque nos ensaios, a situação da minha irmã na UTI foi se agravando. Recebi muita força da Monique. Chegou uma hora em que eu não conseguia mais não dividir, o telefone tocando toda hora. Quando contei, ela perguntou: “Como posso ajudar?”. Nunca vou esquecer o que fez pela minha família. Quando veio o concerto, pensei: “Vou cantar com tudo, é meu jeito de agradecer”. E sempre vibrando “minha irmã vai sair dessa”. Acho que isso ficou impresso nesse espetáculo.
E a expectativa de voltar aos palcos? Cantar cura?
No palco a gente se cura, o povo nos cura. A frequência do mundo mudou, fortaleceu ansiedades que já existiam nas metrópoles e trouxe as dores das perdas de diversas pessoas. A gente entende essa transformação e tenta levantar outra frequência para lidar com os pesos.
Aí entra a força da arte…
Que diz: “Não estamos sós” e traz alento, afeto, abraço, fé e coragem. Tive a sorte de ser convidado para um festival que pensou um line-up só de pessoas pretas e credencia os chamados ambulantes para colaborar com seus serviços. Tentativa audaciosa de mostrar que a comunhão é possível. Vivemos num território devastado. Ainda estamos muito mexidos. Antes da pandemia, já estávamos por conta ds as perdas no campo das lutas humanitárias no nosso país, de um trabalho de décadas virar cinzas em meses.
Como é voltar ao rap agora e, no momento, também experimentando novos gêneros como o trap?
Volto com informação e me permitindo experimentar. Jovens fazem isso magicamente, eu escuto e aprendo. Foi especial trabalhar com Tropkilaz numa estética que não me sentia no direito de fazer. Esperei anos para entender o trap e fazer do jeito mais respeitoso possível. Estou aqui para aprender, mas tudo isso também está ligado a uma diáspora, à uma arvore chamada hip hop. São quase 80 subgêneros do rap, o trap faz parte disso.
Tem essa complicação brasileira da identidade racial, são muitas camadas. Como é a questão da negritude para você, filho de pai negro, que tem a pele clara?
Inventaram vários nomes para o nosso povo ficar disperso, para a gente separar, se enfraquecer. Sabe aquela história de dividir para conquistar? Passa por isso. Somos um território invadido, massacrado. A beleza da diáspora a gente saúda nas nossas milhões de manifestações plurais. Somos todos afrodescendentes, afrobrasileiros. Quem inventou os usos diferentes da palavra estética passa por isso também, enquanto ferramenta de medo, de opressão, de não aceitação, de você se ver e não se enxergar, se enxergar e não aceitar. Quantas décadas leva para se perceber e se amar como se é? Fazemos parte de uma estrutura maior que vem dessa ancestralidade. Quando a gente pegar esses 57% da população e juntar, não vai ter para ninguém.
Você alterou palavras de músicas suas. Tirou, por exemplo, a palavra “Traveco” da canção “Vasilhame”. Por que esse movimento é importante?
É um aceno de que pessoas me ensinaram e eu aprendi. Por que é uma questão do outro, se dói, ele que sabe. Teve um professor de história que fez uma colocação sobre “Cleane”. Disse que não deveria usar a palavra boçal porque é como chamavam os negros para falar que eram ignorantes. Falei: “Brigada, cara, vacilei”. Aí fui pesquisar e descobri que vinha de uma palavra espanhola de 1540, e que os negros se chamavam assim, usavam entre eles a palavra. Não troquei porque entendi o porquê dela. Mas ele fez com que eu estudasse a origem de uma palavra. A música já serviu para além, olha como abriu o leque.
Sua mãe, dona Maria Vilani, professora e poetisa, começou a estudar junto com você. Foi inusitado dividir a sala de aula com ela?
Eu tinha 14 anos. Quando ela foi me matricular na escola, falei: “Pergunta se você pode também”. Ela achava que não iam aceitá-la. Tinha feito matérias em Fortaleza, não sabia em que grau estava, aquela possibilidade era distante para ela. Mas aceitaram. Foram três anos juntos e foi maravilhoso porque pude conhecer a Maria Vilani brincalhona, inteligente, astuta, essa pessoa capaz de aglutinar milhões de pessoas, carismática, piadista, artista, bagunceira, muito bagunceira!
O prefeito de Criciúma demitiu um professor por exibir em sala o seu clipe “Etérea”, com pessoas LGBTQIAP+. Como foi isso para você e como avalia o avanço do conservadorismo nos costumes?
Para quem não sabia, o Brasil é assim, bem-vindo! É o país que mais mata comunidade LGBTQIAP+ e jovens pretos. Isso é novidade para quem? Para quem está longe das favelas, do Brasil real, para quem não vive o dia a dia da comunidade queer, que é de uma força, de um levante criativo estrutura pensante. Ao mesmo tempo, não sabe se chega em casa. Isso bateu em mim como terror, horror, mas é o Brasil. O lance é o que a gente faz dessa energia para construir caminhos que façam isso diminuir.
O público do Criolo rapper torceu o nariz para esse clipe? Porque o ambiente do rap pode ser bem machão, né?
Já mudou muito, as novas gerações nos ensinam. Vi mais acolhimento e celebração de uma movimentação legítima de amor à vida, à sobrevivência. Acredito que a comunidade queer, LGBTQIAP+ é a grande revolução artístico-criativo-cultural do nosso território, é a vanguarda.
Já se especulou sobre a sua sexualidade. Acho que isso tem a ver com o fato de você ser doce e afetuoso numa uma sociedade que tolhe homens a expressar sentimentos. Como lida com isso? E com o seu lado feminino?
É novidade para mim que se especulou sobre isso. A gente nem sabe o que é nada, só vive a vida. Quando você cresce sem saber se vai comer, é estranho falar de emoções, sensações e sentimentos. A prioridade é a sobrevivência. Meu pai era metalúrgico, filho de estivador, com um bisavô escravo. Minha mãe foi estudar comigo, dedica a vida à filosofia dos estudos e da vida num barraco de favela. Cresci com meu pai querendo que eu também fosse torneiro mecânico porque dava sustento, e com minha mãe achando importante os filhos conhecerem outros espaços. Ela saía da favela, arrumava dinheiro para duas conduções para a gente ter uma tarde de pintura. Chamavam ela de louca. Puxava água do poço para dar banho na gente.
A emoção, a sensibilidade são de todo mundo. Falar disso de modo separado é preconceituoso. Só que nos é tomado isso, as crianças do território abandonado pelo estado são tolhidas disso. Criança se é filho de rico é criança, mas se é filho de pobre é moleque. Sensibilidade todos temos, mas nem todos tiveram oportunidade e condição de acioná-la. Tenho referência de cultura japonesa nos meus raps porque meu pai colocou eu e meu irmão no busão por duas horas para chegar no bairro da Liberdade e comer um bolinho de feijão na Praça da República que alguém falou no rádio. Isso influenciou minha vida. É óbvio que é uma sociedade pautada em medo e essa ferramenta tem vários tentáculos. Quando falo se permitir chorar… O que vai ser depois que eu chorar? Como se fosse a fronteira final…