A emoção se foi: Reflexões sobre as eleições presidenciais estadunidenses de 2024

Recentemente reassisti um episódio de 2010 do desenho adulto estadunidense The Boondocks intitulado “It’s a Black President, Huey Freeman” (É um presidente negro, Huey Freeman). Finalmente me senti representada após meses de frustração pessoal com as eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2024. Huey Freeman é um garoto negro precoce e observador de 10 anos, nacionalista e de esquerda. Seu avô, Robert Freeman, e seu irmão, Riley Freeman, estão eufóricos com a eleição do primeiro presidente negro, Barack Obama. Um membro da comunidade pergunta a Huey se ele está animado com Obama. Ele responde: “Eh”. A partir daí, ele é interrogado por uma enxurrada de adultos que não acreditam na audácia de sua resposta morna e sem entusiasmo. A multidão se torna cada vez mais ameaçadora, e ele precisa fugir das zombarias, provocações e ameaças físicas junto com seu avô, Robert, que lembra a Huey que ele lhe disse para não falar sobre, bem…nada.

Na época em que o episódio foi lançado, eu lutei para compreender a mensagem satírica do cartunista e conterrâneo de Chicago, Aaron McGruder. No entanto, quase 15 anos depois, me sinto praticamente igual ao Huey neste ciclo eleitoral. Estou quebrando o meu silêncio às vésperas de uma possível segunda eleição histórica em minha vida. Nos Estados Unidos, podemos testemunhar a primeira mulher negra (e indiana) de descendência jamaicana no comando do executivo. Podemos chegar a dizer “Senhora Presidenta Kamala Harris e Senhor Vice-Presidente Tim Walz”. Diante dessa perspectiva monumental, eu digo: “Eh”.

A versão de mim mesma de 2007-2008 não reconheceria a Jaira de hoje. Eu era uma estudante universitária de ciência política e participava das eleições há muito tempo, mesmo por procuração. Sem ter com quem nos deixar, minha mãe levava eu e minha irmã às urnas. Aprendemos cedo sobre engajamento político e a importância do voto em todos os níveis de governo. Em 2008, eu orgulhosamente votei pela primeira vez na eleição presidencial, apoiando o jovem senador de Illinois, Barack Hussein Obama. Trabalhei como voluntária e fiz ligações para a campanha. Mesmo morando no Brasil, votei novamente por correio em 2012. Estava motivada e pronta para agir!

2024 é uma era diferente. Vejo o mundo de formas que não são bem-vindas para conversas produtivas com a maioria das pessoas interessadas em política. Para muitos, qualquer crítica ao sistema bipartidário atual e ao Partido Democrata é vista como um apoio a Trump e ao Partido Republicano. Não. Estou pedindo para sonharmos além da política partidária. Na ordem global atual, os Estados Unidos operam fundamentalmente como um Estado-nação hegemônico, colonialista e imperialista.

Como uma mulher negra estadunidense, sou frequentemente intimidada com a culpa discursiva que me lembra que meus oprimidos ancestrais morreram pelo direito da minha comunidade votar. Infelizmente, a censura intracomunitária, na forma de um reducionismo identitário acrítico, sufoca conversas necessárias. Ou, como diz o velho ditado estadunidense negro, “Nem todo negro é camarada”. Enquanto a população negra apoia esmagadoramente o Partido Democrata em todas as eleições1, até mesmo o ex-presidente Obama reapareceu para repreender os eleitores negros do gênero masculino em nome da campanha de Harris2. Será que nossas dúvidas têm a ver com o fato de que alguns de nós talvez queiram participar das eleições, mas não consentem com os genocídios contínuos na Palestina, no Sudão, na República Democrática do Congo e no Haiti? Enquanto nossos impostos financiam o caos e a destruição no exterior, somos apresentados à ilusão de que as condições econômicas estão melhorando internamente, algo que nossas carteiras e mesas de jantar não refletem. Me pergunto: como posso honrar meus ancestrais e a mim mesma de forma autêntica neste momento, quando sou confrontada com escolhas impossíveis?

Todas as manhãs, enquanto caminho pelo meu bairro predominantemente negro no South Side de Chicago, vejo placas de jardim com os dizeres “Not going back” (Não vamos retroceder) em apoio à campanha de Harris/Walz desde setembro. Também vejo as ruas esburacadas e cheias de promessas quebradas de investimento, vindas de máquinas políticas locais e além. Os interesses da classe trabalhadora, de baixa renda e da população negra marginalizada precisam estar no centro das decisões, além dos discursos de campanha. Pessoas negras com identidades de gênero marginalizadas e queer devem ser uma prioridade. Os negros do Sul Global, até os das zonas Oeste e Sul de Chicago, devem sentir o apoio de nossos representantes políticos negros, e não serem silenciados por expressarem suas críticas.

Quais são as implicações do meu voto quando minhas opiniões claramente não são representadas por nenhum representante eleito no governo federal? Se nossa liberdade depende da morte de negros no Sudão, no Haiti e na República Democrática do Congo, e do sofrimento, fome e bombardeios em Gaza, Líbano, Iêmen, e Síria, essa é uma liberdade cara demais para suportar. Quantas mortes mais podemos aceitar? Vejo as camisetas usadas com orgulho pelas mulheres negras mais velhas da minha comunidade. “I’m with her” (Eu estou com ela) virou uma marca e uma mercadoria. Além deste ciclo eleitoral, quem está realmente ao lado das mulheres negras, tanto no país quanto no exterior? A candidata à presidência, Harris, não se ofereceu para desviar das crueldades da administração atual, mas, em vez disso, se comprometeu a seguir o mesmo caminho. A história negra não deve ser feita às custas dos povos oprimidos do Sul Global. Estou tentando entender: o que estamos celebrando?

Os impactos globais da hegemonia dos Estados Unidos estão completos. A saúde pública se foi. Infecções repetidas por uma doença vascular mortal e debilitante, sem vacinas ou tratamentos eficazes para a COVID longa, são aceitáveis, desde que o capitalismo continue funcionando. Como a pandemia acabou se as pessoas ainda estão testando positivo e muitas inexplicavelmente se tornam incapacitadas? Não há financiamento significativo para pesquisas sobre a COVID longa. Não há melhorias na mitigação da qualidade do ar em espaços públicos. Não há educação pública de qualidade. Não há saúde gratuita e de qualidade para todos. Apenas sobrevivência e vibes. A mensagem é “Volte ao trabalho.”

Nos nossos supermercados (quando não estão fechando repentinamente em bairros negros)3, bens essenciais e serviços estão cada vez mais inacessíveis, mas os lucros das corporações estão disparando4. Aluguéis e preços de imóveis estão fora do alcance de muitos trabalhadores estadunidenses que recebem salários por hora e trabalham todos os dias5. As mudanças climáticas estão diante de nós, tanto aqui quanto no exterior. Recentemente, o furacão Helene causou uma destruição massiva e abalou a vida de comunidades rurais no interior da Carolina do Norte e outras partes do Sul dos Estados Unidos6. O Sul tem a maior concentração de negros do país.7 Nosso país está travando guerras por recursos como petróleo e gás natural que estão destruindo comunidades e o planeta. Esse não é o tipo de “não vamos retroceder” que me interessa. Quero ver uma liderança corajosa que pense em um futuro onde todos possamos prosperar e viver bem. Eu tenho esperança de que isso é possível.
Mariame Kaba nos lembra que esperança é uma disciplina.8 Meu coração dói todos os dias. Sinto profundamente. E, no entanto, não estou sem esperança. Minha esperança é uma luz radiante que continua a brilhar e é alimentada pelas pessoas maravilhosas e cuidadosas que conheço. Ao longo dos anos, me desinscrevi dos e-mails e do barulho da política eleitoral. Meu investimento está em outro lugar. Fortaleci minhas redes de cuidado comunitário. Me comprometi com a solidariedade e ajuda mútua, tanto transnacionalmente quanto localmente. Expandi minha consciência crítica por meio da educação política e do intercâmbio. A esperança não pode ser reduzida a ciclos eleitorais de meio de mandato e presidenciais. Nossas lutas interconectadas merecem mais entusiasmo e atenção todos os dias. O Partido Democrata vai ficar bem. Quanto ao espetáculo das eleições de 2024, já passamos por isso antes. Eu simplesmente digo: “Eh”.


  1. Os dados das eleições de 2008 mostram que 95% dos eleitores negros votaram em Obama, estabelecendo recordes de comparecimento geral, superando a participação dos eleitores brancos pela primeira vez na história. Veja: https://www.washingtonpost.com/graphics/national/obama-legacy/2008-2012-election-voter-turnout.html. Os dados das eleições de 2012 mostram que 93% das pessoas negras nos Estados Unidos votaram em Obama. Veja: https://ropercenter.cornell.edu/how-groups-voted-2012. Em 2016, de acordo com dados estratificados por raça e gênero, 98% das mulheres negras e 81% dos homens negros votaram em Hillary Clinton. Veja: https://www.pewresearch.org/politics/2018/08/09/an-examination-of-the-2016-electorate-based-on-validated-voters/↩︎
  2. https://www.brookings.edu/articles/why-are-black-men-mad-at-obama/ ↩︎
  3. https://blockclubchicago.org/2024/05/15/after-city-shuts-down-kenwoods-one-stop-foods-neighbors-divided-on-its-future/ 
    https://blockclubchicago.org/2021/10/29/aldi-abruptly-closes-west-side-grocery-store-angering-residents-already-living-in-food-desert-its-a-dire-situation/ ↩︎
  4. https://www.theguardian.com/environment/article/2024/jul/26/food-price-inflation-corporate-profit ↩︎
  5. https://home.treasury.gov/news/featured-stories/rent-house-prices-and-demographics ↩︎
  6. https://www.theguardian.com/us-news/2024/oct/02/hurricane-helene-destruction-timeline#:~:text=Thursday%2026%20September,landfall%20on%20Florida’s%20Gulf%20coast ↩︎
  7. https://www.pewresearch.org/social-trends/2021/03/25/the-growing-diversity-of-black-america/ ↩︎
  8. https://towardfreedom.org/story/archives/activism/hope-is-a-discipline/ ↩︎

Jaira J. Harrington – É professora assistente de Estudos Negros na Universidade de Illinois em Chicago. Por meio de experiência de campo imersiva, estudo de espanhol e português e engajamento comunitário, seu ensino e pesquisas são inspirados pelo ativismo político, feminismo negro e a diáspora africana global nas Américas. Sua pesquisa atual se concentra na intersecção de raça, trabalho e gênero entre trabalhadoras domésticas no Brasil.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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