Feminismo negro centrado na experiência de mulheres negras 

A emergência do movimento feminista em meados do século XX – ancorado na discussão de gênero e em um conceito universalizante de mulher – contribuiu para a insurgência das mulheres como artífices da história, retirou delas a reprodução como obrigação e destino e as lançou para o mundo do trabalho, da academia, da política, da cultura. Provocou uma revolução política, social, cultural e até religiosa como nunca dantes visto. Incluímos aí a religião, uma vez que sou estudiosa da religião e entendo que esse tema tem sido pouco considerado nas análises e elaborações feministas. Nesse sentido, o feminismo, quando insurge no berço europeu e estadunidense, influencia as ações de mulheres no interior do catolicismo (Brunelli, 1988). 

Cabe afirmar que, em todo tempo da história, surgiram mulheres que revolucionaram seus espaços de pertença: ora com seus escritos, ora com suas artes, ora pensamentos e suas lutas, porém, silenciadas e subsumidas aos cânones da história. Essas ações podem ser consideradas antecipatórias do que posteriormente ficou conhecido como movimento feminista.  

Nas palavras da influente feminista negra bell hooks (2019, p.13), “feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, exploração sexista e a opressão”. Nessa perspectiva, o feminismo se origina para combater essa tríade que corrói o tecido social, impedindo a autonomia feminina. Os feminismos possuem agendas e pautas comuns, mas o modo de viabilizar as ações difere de continente para continente, de país para país, de acordo com as demandas apresentadas em cada território. Por isso, afirmar feminismos no plural torna-se necessário, ademais, mulheres são diversas, não existe um modo apenas de ser mulher.  

Conquanto a diversidade e a pluralidade envolvam o movimento feminista, este possui limites e não abarca a experiência de determinados grupos de mulheres, como, por exemplo, mulheres negras. Desse modo, emerge o feminismo negro, trazendo em seu bojo a crítica ao feminismo hegemônico e ao movimento civil. Ademais, ele surge para dar conta da situação particular das mulheres em seus espaços de pertença, por isso, busca situar as necessidades e demandas de mulheres negras, até então negligenciadas pelo feminismo hegemônico. Possui em seu cerne a interseccionalidade com capacidade para visibilizar a multiplicidade feminina, isso permitiu desnudar o que estava oculto por trás da universalidade proposta pelo feminismo hegemônico. 

 Nessa perspectiva, Yuderkis Espinosa Miñoso (2014), no texto intitulado Etnocentrismo y colonialidad en los feminismos latino-americanos: complicidades y consolidación de las hegemonias feministas en el espacio transnacional, deflagra e denuncia o etnocentrismo e a colonialidade nas produções feministas alocadas no chão da América Latina. Contudo, reconhece que há algumas décadas tem se desenvolvido um pensamento crítico e político feminista latino-americano, provocado por novas epistemologias, como, por exemplo, a interseccionalidade que enuncia temas até então ignorados: as desigualdades de raça, classe, idade, religião, orientação sexual, dentre outras. Por outro lado, denuncia a dependência ideológica dos feminismos latino-americanos de epistemologias hegemônicas, e esta dependência se atribui, segundo a autora, à condição geopolítica legada pelos processos de colonização e escravização, à qual fomos submetidos.  

Uma das fortes características do feminismo negro é a experiência das mulheres. Se faz importante enfatizar que este é um tema que possui bastante relevância no bojo deste feminismo, conforme evidencia a ativista intelectual negra Patricia Hill Collins (2019), “a experiência é a base fundamental da epistemologia feminista negra”. A experiência do cotidiano, da vida, do trabalho, das relações sociais e afetivas, torna-se matéria prioritária no cerne do feminismo negro, possibilitando a mudança das experiências das mulheres para melhor (Collins, 2019). 

As experiências e as lutas empreendidas por mulheres negras, a exemplo de Harriet Tubman, Maria Egipcíaca, Luiza Mahim, Esperança Garcia, Antonieta de Barros, dentre outras tantas, denotam um movimento ativo e destemido – elas, porém, foram ocultadas da história, que ainda segue resistente aos saberes e fazeres formulados a partir da experiência vivida por essas mulheres. A necessidade de evocar tais nomes é para que sejam preservados, de modo a não cair no esquecimento. Uma das funções do feminismo negro é quebrar os silêncios que subsumiram o ativismo negro. Audre Lorde (2020, p.55) nos lembra que “(…) há muitos silêncios a serem quebrados”. Silêncios que apagaram o pensamento, as lutas, as experiências, o ativismo de muitas mulheres negras, alocando-as às margens da história. O feminismo negro procura colocar luzes sobre as ações desenvolvidas pelas mulheres negras, de modo a trazê-las da margem para o centro (hooks, 2019). 

O movimento feminista hegemônico desconsiderou um importante marcador social, a raça. Muitas feministas negras denunciaram a ausência deste componente, dentre elas, Sueli Carneiro (2011, p.121), que argumenta que “o movimento feminista brasileiro se recusava a reconhecer que há uma dimensão racial na temática de gênero que estabelece privilégios e desvantagens entre as mulheres”. O não reconhecimento deste marcador da diferença tem sido o fator que tem causado consequências devastadoras na vida de mulheres negras, no campo profissional, da saúde, acadêmico/intelectual, afetivo-sexual, dentre outros. O feminismo negro, ao ancorar-se no elemento raça, possibilita complexificar temas que são parte da experiência cotidiana de mulheres negras, como: reprodução, aborto, trabalho, maternidade, família, solidariedade, solidão, a violência em suas várias expressões, sororidade, entre outros.   

Sobre a política de sororidade – que se traduz como irmandade, uma rede de apoio entre todas as mulheres, plasmada na história do movimento feminista hegemônico –, há no interior do feminismo negro algumas críticas contundentes. Evocamos algumas, nessa discussão, para visibilizar como as mulheres negras constroem conhecimento a partir das experiências e das lutas: bell hooks (2022) e Grada Kilomba (2019). Ambas as autoras entendem que a sororidade defendida pelo movimento feminista implica e reforça a universalidade entre as mulheres; embora seja parte das agendas do movimento, permeia no imaginário das mulheres brancas a incoerência no que diz respeito ao reconhecimento dos marcadores de raça e classe, como, também, a subalternização de mulheres negras.

O livro Mulheres Africanas e Feminismo – Reflexões sobre a política da sororidade, organizado pela socióloga iorubá Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2023), em parceria com autoras africanas, é um convite às feministas hegemônicas a refletirem sobre a construção da sororidade no bojo do feminismo ocidental. A adoção irrefletida do termo carrega a utopia de uma relação harmônica entre as mulheres, ocultando as desigualdades que as separam, enfim, uma sororidade que se transfigura em “sororarquia”, segundo Nzegwu (2023, p.7), que supõe uma hierarquia de subordinações às mulheres negras. 

Digna de menção é a proposição dororidade ofertada ao feminismo negro e ao movimento negro pela escritora brasileira Vilma Piedade, ao contestar o conceito de sororidade, se este daria conta do que ocorre na sociedade com as vidas de jovens e mulheres pretas no que diz respeito às inúmeras violências que atravessam seus corpos e suas vidas. Piedade conclui que a sororidade não dá conta da nossa pretitude (Piedade, 2017). Dororidade, em seu entendimento, corresponde às situações de ausência, marginalização, preterimento, solidão, dentre outros aspectos que envolvem a trajetória da mulher negra em nossa sociedade.   

Enfim, tão importante quanto explicitar a dororidade, é necessário ressaltar que a história da mulher negra não é somente dor e sofrimento, é, também, festa, alegria e conquistas. Afinal, o conceito de dororidade não anula um outro conceito também presente na vida das mulheres negras, a sororidade: a relação é dialógica e se explicita na experiência cotidiana.  

O feminismo negro ancorado no ativismo e no trabalho intelectual tem se desenvolvido fortemente nos últimos anos em terras brasileiras, possui uma larga história, entretanto, silenciada por vezes. Este feminismo encontra-se em ampla expansão em nossos territórios através de publicações traduzidas de autoras afro-americanas, africanas e de autoras brasileiras, pesquisas no âmbito da pós-graduação. Somado a isso, revela-se a importância das redes sociais, que tem possibilitado o alcance das ideias feministas, colocando-as na pauta do dia. É importante enfatizar, nessa discussão, que o feminismo negro está para além das academias, ele valoriza o que é produzido fora desses espaços, por isso, o feminismo negro é arte, música, dança, é poesia, são as expressões populares. Tudo isso são formas concretas de burlar a dominação, a interpretação da realidade vivida. Dessa forma, reiteramos o que o título desse ensaio sinaliza, que o feminismo negro está centrado na experiência de mulheres negras.

Nessa acepção, o movimento feminista negro vive atualmente uma efusiva manifestação de sua potencialidade, conforme exemplificado neste ensaio, que evidencia saberes e fazeres ainda pouco conhecidos. Ademais, tem recuperado nomes de mulheres que, pelo epistemicídio, foram esquecidos: Maria Firmino dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Laudelina Campos de Melo, dentre outras, que pavimentaram em seu tempo e experiências as discussões acerca do feminismo negro. Traz, também, outros nomes mais recentes que desenvolveram esta forma de feminismo: Lelia Gonzalez, Luiza Bairros, Beatriz do Nascimento, Carla Akotirene, Angela Figueiredo e inúmeras outras.  

Angela Figueiredo (2020), unida a outras companheiras baianas, tem nominado esta movimentação ocorrida no interior do feminismo negro, de “Maré Feminista Negra”, considerando que as chamadas ondas que dividiram o feminismo hegemônico (primeira, segunda, terceira), trazem em seu bojo as narrativas predominantes de mulheres brancas. Enquanto isso, mulheres negras produziam desde as margens, todavia, subsumidas. Por tais motivos, as referidas ondas são excludentes ao não incluírem o pensamento feminista negro. Assim, a emergência desta “Maré” realiza uma ruptura e coloca sobre a mesa a discussão sobre a diversidade e a pluralidade feminista, as contribuições de mulheres negras acadêmicas e não acadêmicas, uma nova epistemologia e metodologia comprometidas e centradas na experiência e na vida de mulheres negras.  

A luta desse grupo de mulheres é necessária no sentido de que vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial como a questão de gênero na sociedade brasileira (Carneiro, 2019). Elas criam uma nova percepção autoconsciente – e relutante em repetir constantemente as injustiças do passado colonial –, valorizando os muitos tipos diferentes de conhecimentos e experiências, acima de tudo, as experiências vividas. (Zacaria, 2021). Em outras palavras, o feminismo negro segue sendo necessário para e na sociedade brasileira, uma vez que mulheres negras continuam oprimidas e subjugadas (Collins, 2019). 


Referências bibliográficas:

BRUNELLI, Delir. Libertação da Mulher: um desafio para a Igreja e a Vida Religiosa da América Latina. Rio de Janeiro: CRB, 1988.  

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: TEIXEIRA, Heloísa (antes Heloísa Buarque de Hollanda). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. 

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.

FIGUEIREDO, Angela. Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial. \Tempo E Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0102, jan./abr. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.5965/2175180312292020e0102 acesso em: 18 de jan 2022. Acesso em: 5 out 2024.

hooks, bell. Escrever além da raça: teoria e prática. São Paulo: Elefante, 2022.

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo. Políticas arrebatadoras. 8.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 

MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. Etnocentrismo e colonialidade nos feminismos latino-americanos: cumplicidades e consolidação das hegemonias feministas no espaço transnacional. Revista Venezuelana de Estudos da Mulher, Caracas, v. 14, n. 33, pág. 37-54, dez. 2009. Disponível em: http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S131637012009000200003&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 11 out. 2024

LORDE, Audre. Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. 

NZEGWU, Nkiru. “O” África: imperialismo de gênero na academia. In: OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́ (Org.). Mulheres africanas e feminismo: reflexões sobre a política da sororidade. Petrópolis: Vozes, 2023.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́ (Org.). Mulheres africanas e feminismo: reflexões sobre a política da sororidade. Petrópolis: Vozes, 2023.

PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo:  Nós, 2017.
ZACARIA, Rafia. Contra o Feminismo Branco. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.


Letícia Rocha – É Cientista da Religião, doutoranda em Ciências Sociais, pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), pesquisadora nas áreas de feminismo negro, justiça reprodutiva, pensamento de mulheres negras, mulheres negras e vida religiosa feminina.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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