“A escravidão não oferece resposta para tudo”

FONTEPor Kátia Mello para Geledés no Debate
Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora, professora da Universidade de Brasília e diretora-geral do Arquivo Nacional - Foto: Webert da Cruz

Neste 13 de maio, são 132 anos da assinatura da Lei Áurea, decretando a abolição. Para falar sobre o período pós-abolição e a correlação com os dias atuais, a coluna Geledés no debate entrevistou a professora e pesquisadora do Departamento de História da UnB, Ana Flávia Magalhães Pinto, autora dos livros “Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista” e “Imprensa negra no Brasil oitocentista”. Ana Flávia também é coordenadora da regional Centro-Oeste do GT Emancipações e Pós-Abolição da Anpuh; e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs.

Geledés – Quando analisamos as estatísticas da pandemia de covid -19, é notável como a doença atinge os grupos raciais de forma diferenciada. Dados divulgados no dia 10 de abril destacaram que ela está ocorrendo de forma mais letal para pretos e pardos, que representam quase 1 em cada 4 brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,9%), mas chegam a 1 em cada 3 entre os mortos (34,3%). De que forma essas mortes em maior número na população negra se interliga com nossa herança escravocrata?

A sociedade brasileira do pós-abolição se acomodou a chamar de “herança escravocrata” as violências eventualmente reconhecidas contra pessoas negras. Acontece que a escravidão não oferece resposta para tudo. Precisamos aprender a lidar com ela como parte da explicação sobre situações do passado e do presente. O racismo não pode ser entendido como pleno equivalente dessa “herança escravocrata”. Ele também tem historicidade e não foi, nem é um mero acessório da escravidão. Mesmo sem querer, falamos em “herança escravocrata” porque aprendemos a reduzir a população negra ao papel social do “escravo”, do não sujeito, do não cidadão, do não humano. A construção histórica da incompatibilidade entre pessoa negra e a imagem de indivíduo digno de respeito dependeu, em grande medida, das interdições postas a homens e mulheres livres e libertas, mas racialmente inferiorizadas na hierarquia social durante e depois da vigência da escravidão. Quando foi institucionalizada a cidadania brasileira, em 1822, não foi priorizando pessoas como nós que a elite desse país projetou o futuro, mesmo havendo aqui a maior população negra livre e liberta das Américas. Não por acaso, em 2020, antevéspera do bicentenário da Independência do Brasil, a maior vulnerabilidade social da população negra verificada nos números frios das mortes por covid-19 é mais um exemplo de como o racismo foi organizando cidades, acesso à renda, bens, serviços de saúde, educação, mesmo sendo isso constitucionalmente garantido a todos, sem discriminação. Há décadas, os ativistas antirracistas da saúde pública têm explicitado como a configuração do risco agravado está vinculada à forma como as vulnerabilidades são intensamente atravessadas pelas desigualdades sociais historicamente construídas.

“Não por acaso, em 2020, antevéspera do bicentenário da Independência do Brasil, a maior vulnerabilidade social da população negra verificada nos números frios das mortes por covid-19 é mais um exemplo de como o racismo foi organizando cidades, acesso à renda, bens, serviços de saúde, educação, mesmo sendo isso constitucionalmente garantido a todos, sem discriminação.”

Geledés – Desde o início da pandemia, estabeleceu-se que o coronavírus é um “vírus democrático”, atingindo as populações da mesma forma. Porém o fenômeno de impactar com maior virulência as populações negras e pobres também acontece nos EUA, que também passou por séculos de escravidão. Existe uma relação entre o legado da escravidão no Brasil e nos EUA e com o Estado como o suposto garantidor da vida?

Em abril deste ano, diante dos números que revelavam o quão desproporcionais eram as taxas de infecção e mortalidade da população negra nos EUA por covid-19, houve quem dissesse que o problema era de ordem social e não racial. Acreditando estar demonstrando a centralidade da categoria classe, os defensores do argumento se amparavam no fato de que as pessoas negras estão mais expostas à contaminação pela natureza do trabalho precarizado que desempenham, por serem as que menos têm acesso ao sistema de saúde privado daquele país, etc. Dados do início do mês de maio apontam que em São Paulo, pessoas negras têm 62% mais risco de morrer por covid-19 que pessoas brancas. As razões encontradas são as mesmas. Ou seja, o racismo produz e agrava vulnerabilidades sociais que instituem estratificações entre grupos humanos. O conceito de classe, tal como utilizado, não explica o que temos visto. Uma vulnerabilidade em saúde agravada por força do racismo não acontece porque a população negra tem uma predisposição natural para o adoecimento e a morte. Ao mesmo tempo, não custa lembrar que entender o porquê de pessoas negras estarem morrendo em maior proporção não é o mesmo que negar que brancos pobres também estejam morrendo. Por que, então, negar que o racismo organiza as chances de viver ou morrer em países como EUA e Brasil? Talvez porque ainda falte coragem para que os Estados ditos democráticos admitam explicitamente que não se importam com a vida de parcelas consideráveis ou majoritárias de suas gentes e que o inegociável mesmo é tomar providências para que os que importam sejam salvos.

Foto: Webert da Cruz

Geledés – A revolta da Vacina de 1904, comumente apresentada como uma manifestação da população do Rio de Janeiro contra a vacinação compulsória, foi uma medida estabelecida pelo Estado brasileiro e apoiada pelo sanitarista Oswaldo Cruz para ser contida a varíola. Na visão de alguns historiadores, porém, a revolta é entendida como um movimento dos quilombolas e das classes pobres brancas contra as condições sanitárias da época. Como analisa essa revolta no período pós-abolição?

A Revolta da Vacina aconteceu num momento em que várias outras medidas de saneamento eugenista da cidade do Rio de Janeiro eram postas em curso amparadas em práticas de criminalização e estigmatização das populações negra e pobre que ocupavam espaços estratégicos daquele centro urbano. Se, por um lado, a promoção de medidas de combate à varíola (e outras doenças como a febre amarela e a peste bubônica) era algo necessário, por outro, os métodos empregados não. Tanto que o conflito não foi apenas entre autoridades do governo e da saúde, de um lado, e população negra, pobre e ignorante, do outro. Um exemplo interessante para fugir dessa dicotomia – e até mesmo nos contrapor ao mero bordão que se tornou a frase “A história sempre se repete” -, são as críticas do médico negro Vicente de Souza às decisões endossadas pelo também doutor Oswaldo Cruz. Vicente de Souza, antigo abolicionista, republicano de perfil popular e socialista, até mesmo num gesto de coerência, manteve-se ao lado dos grupos vitimizados pela violência governamental. É importante, portanto, não estabelecer uma equivalência entre a reação da população daquela época e o negacionismo que temos visto tanto por parte do presidente quanto por seus apoiadores dos dias atuais.

“Falta coragem para que os Estados ditos democráticos admitam explicitamente que não se importam com a vida de parcelas consideráveis ou majoritárias de suas gentes e que o inegociável mesmo é tomar providências para que os que importam sejam salvos.”

Geledés – A história foi reducionista em relação à relevância dos líderes abolicionistas negros, atribuindo, frequentemente, à libertação dos escravos à figura de José do Patrocínio e por vezes, de maneira caricata. Qual o papel desses líderes abolicionistas negros?

Mais do que colecionar figurinhas com foto e nome de pessoas, o reconhecimento da multiplicidade de abolicionistas negros e negras é um passo fundamental para entendermos como as lutas pelo fim da escravidão foram vivenciadas no plural. Além de apresentar contrapontos ao projeto da elite que se fez vencedor sobretudo após o golpe que deu início à República, esse exercício nos permite aprender também sobre as diferenças entre lideranças negras. Isso porque estamos falando de pessoas que se posicionavam a partir de seus locais de trabalhos de alto e baixo prestígio social, espaços de lazer, associações religiosas e de lazer, etc., de norte a sul do país.

Geledés – Qual a relevância em se estabelecer um diálogo entre essas lideranças e o atual movimento antirracista, inclusive, em relação ao acesso à educação e cidadania de pessoas negras no país?

 Preconceito de cor e ódio de raça foram expressões que fizeram parte das discussões abolicionistas, mesmo que pairasse o temor de que isso levasse ao descontrole da ação de gente negra escravizada, liberta e livre contra escravistas brancos e pretensamente brancos. Luiz Gama, José Ferreira de Menezes, André Rebouças, José do Patrocínio e Vicente de Souza são alguns dos nomes de abolicionistas negros que encararam o desafio de botar as cartas do racismo na mesa do debate público em diferentes momentos, sobretudo ao longo das décadas de 1870 e 1880. Fizeram isso se posicionando a respeito de pilares do Estado e das práticas de sociabilidade brasileiras. Acredito que essa experiência de tensionamento e negociação são um capítulo importante de ser absorvido por ativistas do Movimento Negro e de Mulheres Negras, bem como demais pessoas antirracistas no cenário atual. O desequilíbrio de forças eram bem marcado, mas o aprendizado adquirido por essas pessoas nesse período me parece fundamental para darmos cada vez mais materialidade à máxima de que “nossos passos vêm de longe”.

Geledés – Se fosse descrever o dia após a abolição, “day after”, como relataria a vida dos ex-escravos após a Lei Áurea? Como eles lidavam com a liberdade?

Mais uma vez, é preciso frisar que o 14 de maio de 1888 foi vivenciado por uma variedade de pessoas negras. Gente cuja família já estava na liberdade há gerações, tendo já nascido livre. Indivíduos que haviam conquistado ou restituído sua liberdade ao longo da vida. E também homens e mulheres que foram libertados por força da Lei Áurea. Sem falar daquelas pessoas que só saberiam da extinção legal da escravidão tempos de depois e viveram na pele o desejo de permanência do escravismo. Como desconfiança ou otimismo, a julgar pelas festas de ruas e celebrações mais tímidas, para as pessoas negras que viveram ou assistiram às lutas pelo fim da escravidão e tiveram notícia do desfecho oficial, o dia após a abolição foi vivido como um momento de reafirmação de expectativas. É certo que não demoraria para que muitos desses anseios fossem frustrados, mas também é verdade que muitas dessas pessoas seguiram apostando nas lutas diárias por suas vidas.

“Mais do que colecionar figurinhas com foto e nome de pessoas, o reconhecimento da multiplicidade de abolicionistas negros e negras é um passo fundamental para entendermos como as lutas pelo fim da escravidão foram vivenciadas no plural.”

Geledés – Em seu livro “Escritos de Liberdade” (Editora da Unicamp, 2018), chama a atenção o fato de que o primeiro censo demográfico realizado no Brasil do século 19 trazia a estatística de que seis em cada dez pessoas pretas e pardas já viviam nas condições de livres e libertas, 16 anos antes do fim da escravidão. A partir desse dado, como o Brasil construiu seu “mito racial”?

 A tensão produzida pela desigualdade racial em terras brasileiras é algo que não começa no século XIX. Ainda que reconhecidas as peculiaridades do período colonial, é possível verificar em documentos históricos como isso era parte do cotidiano há muito mais tempo. O fim do século XIX, com efeito, é quando se dá a universalização da liberdade e o nivelamento por baixo da cidadania das pessoas negras no país. Curiosamente, essa sociedade que absorveu o maior contingente de africanos escravizados, foi a última nação das Américas a abolir a escravidão e via sua população negra como um entrave a seu progresso criou para si uma saída para justificar as desigualdades produzidas e legitimadas: Teríamos formado uma nação livre do ódio de raça. Aqui, ao contrário dos EUA, como argumentou Joaquim Nabuco: “A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas raças ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos”. Considerando os fatos, essa seria a melhor saída possível para a escravidão no Brasil. Só que, diferentemente de ser uma realidade, o mito da democracia racial foi um projeto de dominação branca para a manutenção da subalternidade negra.

Geledés – Neste sentido, quais são as práticas mais relevantes de se interditar o exercício da liberdade e dos direitos da população negra ao longo do pós-abolição?

É difícil falar em práticas mais relevantes de interdição quando se trata de uma sociedade organizada para garantir a negação de direitos de cidadania à maioria de sua população. É por isso que os estudos sobre o racismo no Brasil têm tanto material para analisar. Se você entrar pelas experiências educacionais, vai deparar com um universo de possibilidades para perceber essas interdições. O mesmo se aplica aos campos da saúde, segurança, mercado de trabalho, lazer, moda e por aí vai. O grande desafio de desmontar o racismo estrutural na vida brasileira é que não há contextos mais ou menos racistas.

Geledés- Para ressignificar a escravidão, muitos estudiosos apontam a necessidade de obrigatoriedade do ensino da história afro-brasileira no currículo escolar. Porém essa prática, prevista na Lei federal 10.639/2003, não foi em frente. Como analisa essa situação e quais outras formas de se avançar nessa temática?

A falta de empenho governamental e as dificuldades para o amadurecimento das práticas de educação antirracista não nos permite tomar como fato que as Lei n 10.639/2003 e n. 11.645/2008 não foram em frente. Como disse Luiza Bairros, em 2013, “implementar ou não implementar a lei remete a uma disputa do ponto de vista de valores e de significados profundos da formação do Brasil. É isso que a lei está pedindo. Quando eu olho por esse ponto de vista, eu acho até que avançou. Pensando por esse lado, não era para ter acontecido absolutamente nada”. É inegável que o debate sobre racismo no Brasil ganhou terreno nas últimas décadas e isso certamente tem a ver com o vivido de forma discreta ou explícita na Educação Básica e no Ensino Superior. Até mesmo a ampliação dos espaços nas redes sociais e nos meios de comunicação mais convencionais tem a ver com dinâmicas instituídas e fortalecidas no ambiente escolar.

“Curiosamente, essa sociedade que absorveu o maior contingente de africanos escravizados foi a última nação das Américas a abolir a escravidão e via sua população negra como um entrave a seu progresso criou para si uma saída para justificar as desigualdades produzidas e legitimadas: Teríamos formado uma nação livre do ódio de raça.”

Geledés -A escravidão foi reconhecida como crime contra a humanidade pela ONU, por meio do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, em 1998. Porém é possível identifica-la em distintas situações em nosso país. Em setembro de 2019, um menino foi amordaçado e chicoteado por seguranças da rede de supermercados Ricoy, em São Paulo. O que é o “pelourinho moderno” no Brasil?

 Não acredito que acionar a imagem do “pelourinho moderno” seja produtivo para os nossos objetivos. Já temos provas suficientes de que a sociedade não estabelece relação de empatia profunda com a figura dos escravizados. Reforçar as imagens da escravidão, portanto, não ajuda a luta pelo reconhecimento da humanidade da gente negra no tempo presente. Associar os linchamentos ao passado, além disso, é uma forma de anistiar a responsabilidade do tempo presente. Nesse sentido, justamente por não abrir mão de explicitar a seriedade e a profundidade da violência racial, eu compartilho do entendimento de Grada Kilombo sobre os malefícios de se reeditar as imagens da escravidão na atualidade. A quem e a que interessa fixar a pessoa negra do presente nos lugares da escravidão?

 

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