A experiência de ser o único negro no meio profissional

Essa experiência ocorreu alguns anos depois da minha graduação em tecnologia industrial no CEFET-SP (atual IFSP). E não recomendo a ninguém. No início dos anos 2000 fui contratado para trabalhar na área de engenharia em uma indústria de equipamentos eletrônicos. Inicialmente fiquei animado, a empresa oferecia salário e benefícios interessantes, além de ser uma oportunidade para colocar em prática os ensinamentos da graduação. Mas o racismo baixou a minha bola rapidinho.

Eu trabalhava no meio de oito pessoas brancas, a maioria de família classe média, algumas com experiência internacional e formação profissional de excelência. Nesse cenário, o racismo estava presente em tempo integral. Para você ter uma ideia os brancos me cumprimentavam no início do turno com um “bom dia, mano!”, e entre eles “bom dia” ou acrescentavam o nome “bom dia, Rogério” (nome fictício). Era como se eu não precisasse de respeito, a alcunha “mano” marcava a diferença de classe e raça. Aquele comportamento significava que todos os parecidos comigo − negros e moradores da periferia − constituíam um bloco homogêneo. Ou seja, quando a polícia mata e prende um pai, irmão, filho, amigo, todos negros e periféricos, não age contra pessoas, mas contra os “manos”. No livro “A cor do inconsciente”, escrito pela psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, a autora expõe que o negro é “sempre visto como bandido, sujo, incapaz, e, por mais esforços pessoais que tenha feito para conquistar um lugar social melhor, será um indivíduo marcado por essa cor que não o separa desses implacáveis sentidos de que o configuram o racismo e a discriminação.”  Portanto, de nada adiantava eu ter a mesma função daquelas pessoas brancas, e desempenhar as atividades profissionais excepcionalmente, eu continuava sendo “mano”.

Quando eles falavam sobre o sistema político era revoltante. Defensores árduos do neoliberalismo atacavam as políticas de distribuição de renda, as ações afirmativas, os movimentos sociais e tudo que cheirava às ideologias à esquerda. Com a vitória do governo Lula, o ódio de classe começou a sair pelos poros dessas pessoas. Como a implantação das ações afirmativas entrou em evidência, eles reclamavam e usavam minha correria como exemplo. Da boca deles saía o discurso da suposta meritocracia “vê o Ricardo, não precisou desse negócio de cotas para estudar”. Detalhe: na época não existia cotas raciais, caso contrário eu não hesitaria em correr atrás do programa.

Dentro do setor circulava pessoas de outras áreas, e mesmo assim os brancos tinham o hábito de deixar objetos pessoais à mostra: dinheiro, relógio, carteira etc. Isso me deixava preocupado. Não tinha dúvidas de que se sumisse algo o “mano” seria o primeiro suspeito. Uma das minhas funções na empresa era ministrar treinamentos e cursos para técnicos e engenheiros.  E tem um episódio que não esqueço. O participante quando me conheceu fez o seguinte comentário “jurava que você era japonês”. É que por muitas vezes eu o socorri, ele ligava diretamente no meu ramal para tirar dúvidas técnicas. No entanto, aquele comentário reforça o velho estereótipo de que japoneses são acima da média, e os negros abaixo da média. 

Durante um tempo também participei de exposições, o traje utilizado era social. Apesar de estarmos vestidos na mesma linha, os brancos não perdiam a oportunidade de vir com piadinhas racistas “olha que negão estiloso”, “vai ter missa onde?”, “você está parecendo segurança”. Era um inferno! Outra coisa refere-se à diferença salarial. Durante os dez anos trabalhados, vi muitos brancos sendo promovidos mesmo sendo medíocres tecnicamente, enquanto o meu salário seguia defasado em comparação ao deles. Por fim, são muitas histórias, mas para finalizar este texto observo que as pessoas negras até achavam bacana o meu relativo status como o negro que “chegou lá”, só não imaginavam o preço que eu pagava com a minha dignidade e saúde mental para suportar a carga racista. E de uma coisa eu tenho certeza, se naqueles tempos eu tivesse a consciência racial que tenho hoje, não teria passado do tempo de experiência.

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