A filha da empregada

FONTEPor Tâmila Carvalho, enviado para o Portal Geledés
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Naquele dia de chuva, para não chegar atrasada, acordei as quatro e meia da manhã e fiquei mais de uma hora esperando na frente da empresa. Consegui não me atrasar, mas não puder evitar os pingos de lama na barra da calça. Minha rua de terra batida virava mangue ao sinal de qualquer fina garoa. Aos seis anos era divertido. Aos dezesseis, dolorido. A marcas da calça saíram com água. As da cara demoraram um tempo, ainda hoje sinto respingos.

Cheguei antes de todas as candidatas. Mesmo sem saber quais seriam as perguntas, ensaiei várias possíveis respostas. Meu pai mandou ler o jornal. Minha mãe, o dicionário. A firmeza nas palavras sempre fora meu trunfo. Pena que, dependendo do jogo, essa carta não vale muito.

Em uma recepção com portas de vidro que davam para uma sala grande, sem portas, eu e outras cinco meninas aguardávamos. Elas todas tão diferentes de mim. Camisas claras e calças escuras, muito bem passadas. Sapatos de bico reluzente. Sem água, sem lama. Cabelo escovado. Uma delas com fivela. Cheguei primeiro, sentei no fundo. A comparação foi instantânea. La trás, fui diminuindo. As olhava com suas maquiagens perfeitas e me via. Encolhida, insegura. Cada vez menor. Diz que lavar encolhe. Silêncio. Provavelmente não teríamos assuntos em comum. Elas não pareciam trocar passe de ônibus pelo pão do café da manhã. De onde eu estava, as enxergava de baixo pra cima. A lacuna entre os mundos era grande. Não dava para nivelar.

Uma porta se abriu. O salto alto e grosso estalava no chão de piso frio. Era só o que se ouvia. Com características físicas que facilmente poderiam ser atribuídas à uma atleta alemã, a entrevistadora nos foi chamando, uma a uma, para a sala grande, sem porta. De lá, tudo se ouvia, inclusive o tom simpático que se opunha ao semblante ríspido, dedicado as primeiras moças. Dava para ouvir também o titubear de algumas frente à questões políticas e a superficialidade de outras quando indagadas sobre os próprios quereres futuros. Não eram adversárias assustadoras. Assim como eu, eram só adolescentes aspirando possibilidades.

Apesar de primeira a chegar, meu nome foi o último a ser chamado. Esperava que o resultado daquele olhar analítico e fulminante fosse alterado no momento em que a tal mulher de salto conhecesse meus ideais, minha história, e porque eu merecia (e precisava) aquela vaga.

Ela se limitou a perguntar onde eu morava e, depois de ouvir a resposta, por que buscava estágio tão longe da minha casa. Apesar do hábito de copiar o dicionário para ocupar meu tempo livre, somente naquele dia entendi o que significava a palavra “desdém”. Depois de duas ou três perguntas sem nexo ela pediu que fizesse uma redação com o tema “Futuro do Brasil”. Respirei fundo e acreditei ter assumido novamente controle sob minhas ações. Não estava confortável no lugar de entrevistada. De autora, sim. Todas as notas altas nas redações escolares me encheram de confiança. Senti como se um pombo batesse asas no meu peito. Me pus a escrever. O tom era crítico e nada condescendente para uma garota da minha idade. Não falei sonhos ou metas individuais. Ampliei o olhar sobre minhas necessidades. Quando se fala de um país, “eu” vira “nós”. Ficaria entendido que ali eu falava por muitas de mim. O cenário díspar que compôs minhas vivências se mostrou claro nos primeiros parágrafos. Busquei nos livros de filosofia indicados pela professora de história argumentos para embasar o que dizia e o que esperava do futuro. Finalizei o texto com uma alusão a um jogo de futebol: “Por aqui, diferente da televisão, estamos perdendo o campeonato. Por mais que um jogador se destaque, fica difícil jogar quando a torcida está contra e o juiz, comprado.”

Sorri e entreguei a folha cheia de questionamentos apaixonados. Frente e verso. Acima da mesa, outras folhas rabiscadas me mostraram que as demais candidatas não tiveram tanta inspiração. Respirei. A vaga podia ser minha, afinal.

Saí da sala grande a me coloquei junto as outras candidatas. Nos foi pedido que aguardássemos. Diriam ali mesmo quem seria contratada. Minhas mãos suavam. Pensei na minha mãe lavando roupa na máquina que eu ia comprar. Algum tempo se passou até um senhor de cabelo grisalho entrar. Apesar de baixarem o tom, ainda podíamos identificar os fonemas. O senhor austero começou a ler nossos textos e o ouvimos perguntar por uma redação em especial, elogiando a gramática e as metáforas usadas.

Deixando o pensamento escapar pelos lábios, a garota de olhos claros e cabelos cirurgicamente escovados, perguntou a si mesma o que era uma metáfora. Fiquei na dúvida se respondia. A cor rosada em seu rosto indicava que não era a intenção ter dito em voz alta. Não respondi.

Eles falavam sobre a minha redação. Naquele instante senti meu ego balão. Não foi muito longe.

“Escreve até que bem , mas não é uma opção. É a garota que está com lama na roupa. A vaga é para recepção. Como aquela figura vai receber nossos clientes de alto padrão. Cara de pobre. Parece filha da minha empregada.”

Verdade, eu era filha de uma empregada. Achei que era para ter orgulho e não uma “cara”. Isso nunca foi uma questão. Dona Elza, minha mãe, começou a trabalhar aos nove anos na fazenda em que nasceu, em Itubera, na Bahia. Dava para sentir o misto de brio e lástima no tom da fala todas as vezes que, para me incentivar, ela repetia sua história. Não pensei que um dia aquela narrativa rica seria motivo para eu me esconder.

Ouvir aquilo me quebrou. Morri e nasci em segundos. Aprendi a viver a partir dali. Com aquela marca. A palavra pobre como sinônimo de ruim. Não era mais indivíduo. Apenas a pobre filha da empregada.

Entendi que nesse mundo existem outros dois mundos. Uma separação esquizofrênica que indica quem está aqui para servir e quem está para consumir. E que se deve manter distância segura entre esses dois universos. Derrubam as pontes, todos os dias.

Sem ação, sem palavra. Não me movi e não ouvi mais nada. A vontade era levantar e sair correndo. Mas não dava. Agora tinha um peso que nunca tinha carregado antes. Pernas pregadas na cadeira preta. As meninas me olhavam, constrangidas e complacentes.

Os dois recrutadores saíram da sala grande e chamaram um nome. A jovem de cabelo escovado que não sabia o que significava a palavra “metáfora” fora escolhida. Os luminosos olhos claros ficariam melhor postos aquela vitrine. Eu não era o manequim adequado. Um “tchau”, seguido de um “muito obrigado”, e fim. Aquele capitulo acabou ali.

Não contei a ninguém. Engoli vidro sem chorar. Aquelas frases ficaram na minha cabeça fazendo ciranda. Um eterno sentimento de inadequação. Eu não cabia nos lugares. Toda vez que tentava me encaixar, me sentia menor. Por mais que me esforçasse, jamais seria a menina de olhos claros, cabelos escovados e sapato reluzente. Ela sim. Boa o suficiente. O discurso daquela mulher era o endosso para única certeza que eu tinha. Que todos que nasciam onde eu nasci tinham. A certeza que não te deixam esquecer. O seu quinhão. O único norte. Já está escrito o que você vai ser quando crescer: Nada!

Parei de escrever histórias. As poesias não chegavam ao fim. Até o linguajar mudei. Objetivo inconsciente programado. Aproximar daquele mundo e se afastar de mim. Apagada. Não tinha mais orgulho da rua de terra onde morava. Só não estava vazia porque dentro tinha raiva. Quando se nasce pobre, automaticamente, te amarram à uma bigorna. Um corpo parado é um corpo facilmente controlável. É o projeto, nada pessoal.

Anos se passaram desde aquele episódio. Me embriaguei com os muitos rumos que a vida tomou. Nenhum deles, esperado. Dona Elza não está mais aqui. Precisei ir e vir muitas vezes pra gostar desse lugar, mas não parei, e esse é o ponto. Assim como água, criatividade parada não gera vida.

Quase vinte anos depois, ouço e leio o mesmo discurso paralisante nos jornais e na tv. Penso no estrago. Uma foice que passa no nosso lado da ponte e deixa tudo menor. Estratégia certeira. Se valem da ignorância para impor à vítima a culpa por se perceber na falta e querer mudar.

Aos trinta e três anos, contrariando estatísticas, circulo em meio a burguesia com diploma e sem usar uniforme. Mas sempre serei a filha da empregada. Essa é minha medalha. Motivo para me orgulhar e para não esquecer que, através dos esforços daquela doméstica, consegui pegar a força as oportunidades que não me foram dadas. Ter consciência do meu lugar me motivou a caminhar. Raiva também é combustível. Por vezes, determinante.

Quando absurdos limitantes dizem que não posso, lembro: “As ideias dominantes são ideias da classe dominante…”

Eles têm medo. Sigo.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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