A filósofa que rejeita classificações

Em entrevista exclusiva à CULT, Judith Butler fala sobre seu diálogo com as obras de Hegel, Foucault e Derrida, entre outros

Por Carla Rodrigues Do Revista Cult

Uma das medidas de recepção da obra de um autor é a sua tradução, que provoca novas obras em torno de seu pensamento, produz ecos e reflexões.

Desde que foi lançado, em 1993, nos Estados Unidos, o livro Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, da filósofa Judith Butler, foi editado em 23 países, entre os quais o Brasil. Desde então, suas proposições sobre gênero como performance, suas críticas ao ideal identitário e sua abordagem sobre a normatividade de gênero se disseminaram em diferentes campos de estudo: filosofia, antropologia, teoria feminista e teoria queer, da qual, particularmente, se tornou símbolo. Embora não seja seu primeiro livro, foi em Problemas de gênero que muitas das ideias da filósofa ganharam projeção, inaugurando um debate rico para o campo dos estudos de gênero. Ao deslocar o problema de gênero do campo das diferenças sexuais para o da heterossexualidade normativa, Butler renova a pauta feminista por questioná-la sem, no entanto, abandoná-la.

Professora na Universidade da Califórnia, onde é co-diretora do Departamento de Teoria Crítica, Judith Butler é anunciada na França como continuadora do pensamento de Michel Foucault – o_que ela recusa – e é tida, por muitos autores, como pós-feminista – o que ela também rejeita como classificação.

Nesta entrevista, ela expressa seu vigor ao tratar de questões como a crítica à identidade e a  afirmação política de sua condição de lésbica, bem como problematiza a naturalidade do desejo heterossexual e a patologização do transtorno de identidade de gênero.

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CULT – Entendo sua filosofia como parte de uma grande linha de pensamento de crítica à identidade e ao humanismo. A crítica à identidade é política, é importante porque pensa os próprios termos em que as identidades são forjadas. No entanto, a senhora também se apresenta e defende determinadas identidades, como lésbica ou judia. Há um paradoxo em criticar as identidades e, ao mesmo tempo, usá-las como estratégia política?

Judith Butler Precisamos, inicialmente, estabelecer a distinção entre uma crítica da identidade e uma crítica do humanismo. Por exemplo, podemos imaginar certos humanistas criticando a identidade precisamente porque algumas delas atrapalham nossa compreensão da humanidade comum. Então os dois projetos são diferentes. Quando falamos numa crítica da identidade, não significa que desejamos nos livrar de toda e qualquer identidade. Pelo contrário, uma crítica da identidade interroga as condições sob as quais elas se formam, as situações nas quais são afirmadas, e avaliamos a promessa política e os limites que tais asserções implicam. Crítica não é abolição. Por fim, faz grande diferença se alguém toma “ser uma lésbica” ou “ser um judeu” como fundamento ou base de todas as suas outras visões políticas, ou se, ativamente, compreende que as categorias são historicamente formadas e ainda estão em processo. Então, minha perspectiva é a de que não é útil basear todas as demandas políticas de alguém em uma posição de identidade, mas faz sentido levantar, como uma questão política explícita, como as identidades foram formadas, e ainda são construídas, e que lugar elas devem ter num espectro político mais amplo. Por exemplo, as alianças tendem a ser descritas como a união de várias identidades, mas uma razão pela qual elas são dinâmicas, mesmo democráticas, é que as identidades são transformadas à luz dessa união e, muitas vezes, tornam-se menos importantes quando são constituídas com certos objetivos em mente, como a privatização, a homofobia ou o estado de violência.

Em que medida ser lésbica foi o que lhe motivou a repensar os termos da separação sexo/gênero tais quais propostos por Simone de Beauvoir? Ou, em outras palavras, podemos colocar o seu pensamento, sobre a obra da filósofa francesa, como parte de um arcabouço crítico e também excludente ao movimento feminista?

Grande parte do meu trabalho se dedica a compreender o que frases como “ser uma lésbica” possam significar. Sim, sou chamada assim, e chamo-me assim em algumas ocasiões, mas não estou certa de que a expressão me descreve no nível do ser! De fato, eu me preocupo com aqueles momentos nos quais o discurso tem o poder de estabelecer “o que eu sou” ou “o que você é” – esperamos que nossos desejos e vidas permaneçam, de algum modo, sem serem capturados por esse tipo de discurso. Não tenho uma posição sobre Simone de Beauvoir, mas acho algumas de suas formulações extremamente úteis. Então, penso que a sua ideia de que alguém “se torna” uma mulher é importante, abrindo a possibilidade de se tornar algo diferente de uma mulher, talvez um homem, ou talvez algo que exija outra forma de prática de nomeação. Não me importa se Simone de Beauvoir concordaria com a última afirmação ou se podemos encontrar justificativas em sua obra para tal assertiva. O trabalho dela tornou o meu possível. Meu trabalho é diferente, e sou grata pelo que ela ofereceu.

A senhora se define como feminista?

Geralmente não defino a mim mesma, mas se você está perguntando se aceito ser chamada feminista, certamente que sim. Não me compreendo como uma pós-feminista.

A senhora se debate com o problema de ter a sua obra classificada como “teoriaqueer”.  Por quê?

Não é um problema, mas não existia “teoria queer” enquanto eu escrevia Problemas de gênero. Soube apenas depois de sua publicação que ela foi chamada assim. Então, para mim, é interessante como tais categorias de pensamento subitamente vêm à tona e como alguém pode se encontrar categorizado de uma forma que eu não poderia ter antecipado. Não tenho problemas com isso.

Alguns lacanianos desqualificam as críticas feministas ao pensamento de Lacan, afirmando que as feministas não leram ou, se leram, não o entenderam. Afinal, por que o embate com a teoria psicanalítica é tão importante para a teoria feminista?

Primeiro, é importante notar que há um amplo espectro de teorias psicanalíticas. Na França e em algumas partes da América Latina, as escolas lacanianas se tornaram hegemônicas, mas, no resto do mundo, esse não é o caso. Há pensadores feministas e queer que não se baseiam primariamente em Lacan, e há outros que o empregam de forma seletiva, considerando algumas posições úteis e outras não. Eu mesma li Freud, Laplanche e Winnicott para grande parte de meu trabalho mais recente, e eles foram extremamente úteis para tentar compreender modos relacionais de ser, que não são baseados no ego e que buscam estabelecer possibilidades de desejo e de sociabilidade fora da estrutura do narcisismo. Lembremos também como os teóricos queer Leo Bersani e Lee Edelman mostraram claramente que, para Freud, a sexualidade não está “naturalmente” ligada à reprodução. Ela tem objetivos que muitas vezes não são compatíveis com a reprodução heterossexual, e isso produz um obstáculo permanente para aqueles que querem afirmar a existência de formas naturais de desejo masculino e feminino ou da própria heterossexualidade.

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Desde que a senhora publicou Undiagnosing Gender, houve mudanças no DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) em relação à patologização do chamado transtorno de gênero. Qual a sua opinião sobre os termos do DSM-5? Acredita que é necessário manter a disforia de gênero como doença afim de garantir o apoio dos serviços médicos às cirurgias de mudança de sexo?

Minha visão é a de que as instituições sociais e médicas devem afirmar o transgênero como uma importante realidade psíquica e social e fornecer assistência que permita a transição livre da patologização. Considero muito doloroso que as pessoas tenham de se submeter a essa patologização para obter assistência e reconhecimento.

Hegel foi um filósofo marcante na obra de Lacan e também na sua. Em que medida as proposições hegelianas sobre o sujeito influenciam seu pensamento?

Escrevi minha dissertação sobre a teoria do desejo e do reconhecimento em Hegel. Na época, estava interessada, principalmente, nos modos pelos quais o desejo de reconhecimento é frequentemente vencido, embora permaneça como possibilidade de ser satisfeito apenas na vida ética ou no que chamamos de sociabilidade. Então, uma implicação dessa posição hegeliana é a de indagar sob quais condições o reconhecimento do desejo seria possível? Para a população LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) e para as mulheres, bem como para todas as pessoas, essa é uma questão de grande relevância. Ao mesmo tempo, as categorias disponíveis para o reconhecimento do desejo são invariavelmente limitadas, sofrem transformações e devem ser compreendidas como se constituindo a partir de um processo histórico. Portanto, algumas vezes, a categoria pela qual alguém busca reconhecimento o conduz à derrota do desejo ou o interrompe no percurso. Talvez o desejo exceda qualquer categoria possível de reconhecimento. Se assim é o caso, como isso altera nossa ideia do lugar de tais categorias na política?

Nesse sentido, a senhora se considera uma continuadora da obra de Michel Foucault?

Eu não continuo, de fato, a obra de ninguém. Encontro tensões muito importantes no pensamento de Foucault e as sigo. Não pertenço, de fato, a uma escola. Foucault continua a ser muito importante para mim.

Em relação a Jacques Derrida, a senhora assistiu a muitos de seus cursos nos Estados Unidos. Poderia localizar qual a influência especificamente no seu trabalho de desconstrução do par sexo/gênero?

Assisti a muitas de suas conferências e creio que ele ajudou a ensinar uma geração inteira de acadêmicos a ler. Portanto, também tem minha gratidão. Não estou certa de que me engajo numa “desconstrução” do par sexo/gênero, mas certamente emprego formas desconstrutivas de leitura para mostrar como a autoidentidade de categorias sociais revela-se mais complexa do que pareceria à primeira vista. É por isso que, apesar de ser chamada de lésbica, e de chamar a mim mesma assim (embora não diariamente e não em todas as circunstâncias), relutaria em instalar o lesbianismo na ordem do ser. Isso não porque as lésbicas não existam – estamos em toda parte. É porque devemos ser cuidadosas sobre aquilo que queremos expressar com o termo, deixando-o ser um campo de contestação e deixando-o como parte de uma situação histórica na qual ele se efetiva. Isso é diferente da ontologia, e a desconstrução nos ajuda a percebê-lo.

Carla Rodrigues é professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. É autora de diversos artigos sobre a obra de Judith Butler e também de Hospitalidade e responsabilidade: duas palavras para o feminino (Nau Editora/Faperj, 2013)

Traduzido por Cadu Ortolan

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