“A música corajosa de um tambor distante”

Há factos em nossas vidas que podem suscitar novas experiências, descortinar veredas e inaugurar novas trajetórias pessoais. Há livros que fazem o mesmo, encetam novas leituras, interpretações e relações entre o leitor e os livros que ainda entrarão em sua vida. Foi o que me aconteceu no Gana, país onde vivi durante quatro anos e onde me envolvi em múltiplos encontros com os seus devidos ensinamentos.

Enviado por CÁSSIO SERAFIM para o Portal Geledés

Foi em meados de 2013, quando uma amiga me emprestou o livro Brave music of a distant drum, de Manu Herbstein (2012), escritor sul-africano, naturalizado ganense. Dona Adelita, para além de ser uma pessoa querida, culta e de companhia agradável, sempre se mostrou uma amiga e de conselhos certeiros. No dia em que me entregou o livro, parecia dizer-me: “Você precisa de conhecer Ama”. E eu precisava mesmo, confirmei-o depois.

Viajei pelas mais de duzentas páginas escritas por aquele homem que tão sensivelmente registrou a história de uma mulher negra, velha, cega, escrava, que, quando jovem, princípio do século XIX, foi arrancada do seu universo e posta nos porões de um navio para, em longa jornada, cruzar o Atlântico e finar-se num rincão em plagas brasileiras.

Na transcorrência das laudas, eu não conseguia ler as palavras de um homem, do escritor, e nem sempre eu notava com precisão a interação entre as personagens. Porém, com vitalidade, sentia a voz de uma mulher forte que se fazia ouvir mesmo quando outros tinham o turno da palavra. Ama mostrou-se-me objeto de carne e osso, propriedade de outrem: indivíduos como ela tiveram as suas existências vilipendiadas por agentes de opressão e dominação interna e externa à sua terra de origem. Não obstante, Ama revelou-se-me sujeito: ela construiu a história de uma mulher cujas maiores características eram a sua firmeza de espírito, perseverança, destemor… uma narrativa repleta de aprendizagens, ensinamentos, tristezas, alegrias, ódios, amores… e, sobretudo, coragem de contestar o que parecia ser destino.

E o destino poderia ter sido o silêncio ignóbil imposto pelas forças colonizadoras dos estrangeiros e pelas forças do patriarcalismo, tão intensas na terra de onde foi extirpada e naquela onde foi lançada. Ou poderia ter sido a cegueira; não à sua própria, mas refiro-me à cegueira hedionda, social e coletiva, de quem ─ por ímpetos colonialistas ─ se nega a perceber o brio daqueles que foram vitimados pela soberba dos imperialismos de diferentes procedências. No entanto, Ama reservou a si e a todo e qualquer leitor que se aventure por sua trajetória uma melhor sorte: a eternidade de uma voz, que, mesmo abatida pelas circunstâncias da morte, é capaz de entoar a música de um tambor distante, com ressonâncias em ouvidos alheios, ditando o ritmo do que possa vir a acontecer.

Esse ritmo confunde-se com a escrita da narrativa que apenas se fez possível pelas mãos de Zacarias, que viajou de Salvador até o engenho onde Ama se encontrava. A atenção reservada por aquele jovem àquela mulher velha, negra, cega, adoecida, resultou na prova maior dessas ressonâncias. Ela era a sua mãe, aquela que o nomeou Kwame Zumbi, nome inicialmente recusado por ele sob o argumento de que não era um nome cristão. Escutar e escrever a história daquela mulher provocou-lhe a descoberta da sua própria história. Enaltecido com a bravura da mãe, embevecido com a música que a sua voz manifestava, Zacarias enfrentou quem ele muito respeitava, a quem era tão grato pelos ensinamentos cristãos e quem, por fim, ele identificou como reais algozes do silenciamentos do tambor que existia em si. Após a morte da sua genitora, Zacarias regressou a Salvador, à casa do Senhor Gavin Williams e da Senhora Miranda Williams, os seus donos, tendo em mãos aquelas folhas preenchidas com a história que compreendia não somente à vida da sua mãe, mas de todo um povo e à sua própria. Lá, ele foi aviltado por seu Senhor Williams, que ficou completamente encolerizado, ao tomar conhecimento das revelações sucedidas quando do contato entre o seu jovem escravo e a sua velha escrava cega. Num ato de bravura digno de ser filho de quem era, Zacarias rechaçou o seu nome cristão e assumiu-se Kwame Zumbi, conforme o desejo de Ama e para o desespero do Senhor e da Senhora Williams.

No romance de Manu Herbstein, a escrita mostrou-se como estratégia e instrumento utilizados pela protagonista para resistir às forças que causaram o seu exílio além-mar e que subjugaram populações. Paralelamente, a escrita foi capaz de preencher os vazios da alma de Kwame e de impeli-lo a apropriar-se de pertencimentos culturais que lhe tinham sido omitidos. Uma vez consciente da história da sua mãe, Kwame retomou o processo de constituição de si sob uma nova perspectiva, em que a identidade é concebida menos como essência e mais como resultado de um processo representacional constante, incompleto e confuso. Quando em contato com a mãe e a sua história, Kwame não se via a partir dos mapas conceituais apresentados pelos donos. Ama forneceu-lhe outros sistemas representacionais, inseriu-o em outros campos semânticos, os quais remetiam a culturas vistas, sob a ótica branca e cristã, como bestiais, não divinas, pecadoras, incivilizadas. Ama, portanto, ofereceu a Kuami a chance de reler-se e reinscrever-se como sujeito de ancestralidade africana.

A história de Ama ecoa metáforas de cor, carne e alma que se materializam ainda hoje. Consequências do período de escravidão, tráfico humano e outras ações da empresa da colonização iniciada no século XVI permanecem estruturando certos sistemas socioculturais mesmo no período chamado pós-colonial, os dias atuais. Sofrimentos ainda são sentidos. Quem ou o que poderia parar a dor de Ama ou de tantas Amas que existiram? Seria o seu silêncio? Não. Como bem adverte o autor na introdução do romance, o silêncio em relação às atrocidades do período da escravidão não apaga aquele momento lutuoso, mas a produção discursiva em torno do mesmo poderá evitar que algo parecido suceda de novo. Nesse sentido, a literatura e, em especial, o livro de Manu Herbstein mostram-se a mim como um importante canal não só para se transmitir uma música corajosa mas também para promover uma ação transformadora.

Referência
HERBSTEIN, Manu. Brave Music of a Distant Drum. Markham: Red Deer Press, 2012.

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