Ser um negro bem “comportado” e sucedido não vai te livrar do Racismo

Faz um tempo que espero uma oportunidade de dar algum tipo de continuidade ao texto Alice no País dos Não-Racistas, então, quando me deparei com o maravilhoso texto Nem Seu Cabelo Nem Seu Turbante Vão Te Livrar do Racismo, aproveitei a oportunidade. Espero fazer jus ao lacre que é o texto de Joice Berth.

por LEOPOLDO DUARTE

Talvez um dos efeitos mais perturbadores do racismo que impregna a nossa cultura seja o sentimento de impotência que não-brancos apresentam diante desse complexo de inferioridade branco. Diante dessa persistente depreciação de tudo que não tem raízes na Europa, para que europeus – e descendentes – se sintam “os escolhidos”. Diante da constante tentativa da branquitude de adiar o seu karma histórico através da auto-afirmação virulenta.

Talvez um dos efeitos mais nocivos do racismo seja o emolduramento das subjetividades negras em estereótipos – identidades opressoras que limitam as maneiras pelas quais toda a sociedade interpreta toda e qualquer pessoa negra. No livro O Negro Brasileiro e o Cinema, João Carlos Rodrigues analisa boa parte das caricaturas que a cultura branca produziu – e ainda (re)produz – sobre nós: os místicos pretos velhos; a mãe preta; o negão; o malandro; o favelado; a mulata boazuda; a musa; o afro-baiano e alguns outros exemplos tão facilmente reconhecíveis atualmente.

O autor também menciona o(a) negro(a) revoltado(a) e o crioulo doido. Sendo estes os referenciais mais abomináveis num sistema de supremacia branca por definirem pessoas negras que não se sujeitam aos moldes impostos pela sociedade que os desumaniza. Pessoas  que podem vir a se tornarem mártires – outro arquétipo listado pelo autor -, e encorajarem outras pessoas negras a romperem com o manual de bom comportamento forçado desde as Casas Grandes. Ou seja, até os inconformados são enquadrados pela perspectiva dos antigos senhores(as) de escravos. Afinal a rebelião, a loucura e a raiva são consequências previsíveis de qualquer opressão e, logo, precisam ser catalogadas na tentativa de identificar e controlar a ameaça representada pelos desgarrados.

Porém o que sempre me choca é a persistência dos negros d’alma branca. Nobres selvagens que se orgulham de sua condição e se esforçam para serem bem-quistos na mais alta estimação. Pessoas negras que não somente aceitam a subjugação racista como também se contentam com qualquer migalha de dignidade e aceitação concedida por pessoas brancas. Pessoas negras que se tornam palhaças e passam a ser as primeiras a fazerem piadas racistas entre pessoas brancas para se sentirem responsáveis pelo escárnio e não vitimas dele. Pessoas negras, que em qualquer debate sobre racismo se desesperam em socorrer a opinião de pessoas brancas. Pessoas negras que são contra a luta anti-racista, mas que, curiosamente, aprenderam a ler e escrever, estudaram formalmente em alguma instituição, (teoricamente) possuem direitos perante a lei e desfrutam de alguma independência da antiga Casa Grande. Digo “alguma” porque a escravização não foi apenas física, mas principalmente mental.

O racismo não prejudica somente quem sonha com um futuro sem rótulos, desigualdades e opressão. Não afeta só os militantes “vitimistas”. Assim como pessoas brancas são racistas independente da repulsa que possa sentir ao sistema, toda pessoa negra é impactada danosamente por ele. Nada importa se você saúda as atuais chicotadas com bom humor e perseverança. O racista jamais ataca indivíduos, mas sempre a coletividade de pessoas que compartilham os traços fenotípicos e genéticos indesejados.

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Sendo assim, tanto faz se você rejeite o samba, o reggae e o hip hop, quando estes ritmos tocarem pessoas brancas esperarão que você as entretenha dançando. Repetir o mantra “somos todos iguais” não impedirá que policiais e seguranças te tratem de maneira discriminatória. Acreditar que com esforço “todos somos capazes das mesmas conquistas” não garante que um branco menos qualificado que você não será o escolhido para uma vaga de emprego com uma oferta salarial maior do que a que lhe foi oferecida. Assim como casar com uma pessoa branca nunca impediu jogador de futebol algum de ser chamado de “macaco” por um estádio lotado — tanto em Reais quanto em Euros —, aceitar ser hiperssexualizado(a) não fará como que parceiros brancos prefiram apresentar você aos amigos e não seus nudes. Optar por não se ofender com as piadas racistas não impedirá que seus filhos um dia voltem chorando pra casa por ouvirem as mesmas gracinhasClarear a família tampouco garantirá que não te confundam com a babá ou sequestrador dos seus próprios filhos. Ser contra o movimento negro não entrará em questão quando alguém suspeitar que você não é o proprietário do carro ou da casa comprados com o seu suor.

Como bem colocou Bito Santos: enquanto você tenta provar que vai dar certo – que não vai entortar – e assegurar a si e aos outros de que é um bom negro, todas as pessoas brancas simplesmente nascem melhores e livres do encargo de terem que atestarem o seu valor. Pois, caso não tenha ficado evidente, esse seu esforço em ser um negro exemplar demonstra a sua familiaridade com as estruturas racistas que você insiste em não perceber e contestar.

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