A vida se cobre de simplicidade após a reflexão proposta por três crianças pequenas e suas respostas descomplicadas
POR FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo
A amiga conta numa rede social que percorria um trajeto banal com a filha pequena no carro. Do nada, ouviu a pergunta paralisante: “O que é destino?”. A resposta veio aos poucos, vacilante: “Destino é alguma coisa que vai acontecer, mas ainda não ocorreu”. A cabeça da mãe ainda girava com o questionamento tão inocente quanto profundo, quando a menina devolveu, no melhor estilo geração GPS: “Pensei que destino fosse a nossa casa”. Simples assim.
Na saída de uma manhã no museu, outra amiga lembra do papo cabeça da véspera com o filho, no planeta há não mais que meia década: “Mamãe, o que é pobre?”. A explicação saiu em duas partes, com a pobreza classificada nas dimensões material e intangível. Pode ser quem não tem dinheiro para comprar tudo o que precisa, como remédio, roupa, comida. Pode ser quem não tem bons sentimentos no coração, quem trata mal os outros. É questão de tempo o bilhete da escolinha sobre o novo adjetivo a classificar o malvado da turma. Ao “feio, bobo, chato”, somar-se-á o “pobre!”.
E a priminha corre na mais velha para esclarecer o dilema da hora: “O que é classe?”. Na a ver com a turma da sala de aula. A menina mal completou 7 anos e já apresenta indagações marxistas. A prima adulta começa a explicar que há quem divida pessoas em grupos (ou classes). Há os ricos, que têm muito dinheiro; há os pobres (de novo, eles), que têm pouco. Já que a prosa tomou esse rumo, a pergunta seguinte bandeia para a autoclassificação: “A gente é rica? Tipo assim, com mil reais?”.
Foi Gonzaguinha quem cantou a pureza da resposta das crianças no samba “O que é, o que é”, gravação de 1982 que integra a galeria dos clássicos da música brasileira. Três décadas depois, o que dizer da simplicidade sofisticada das perguntas? Com uma dúzia de palavras, os miúdos conseguem desconsertar adultos cheios de si.
A colunista aqui travou com a conversa sobre destino. Deu vontade de ligar para a pequenina e desafiá-la: “Defina casa, por favorzinho”. Anos e anos de mudanças e divã para se dar conta que o substantivo nada tem a ver com os formulários da vida e suas lacunas para logradouro, número, complemento, bairro e código postal.
Casa é o lugar que te moldou. É o endereço da infância, que, mesmo deixado para trás, segue vivo no inconsciente e se apresenta nítido nos sonhos. Mas pode ser o local que te acolhe. O ombro do amado, o sorriso da filha, a saudade da mãe, o abraço do amigo. Casa é o cheiro úmido de maresia e esgoto do Rio (essa despoluição da Baía de Guanabara que nunca vem!), o burburinho da concentração na avenida Presidente Vargas nos dias de desfile, a sombra da mangueira nos fundos da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Salvador.
Foram quarenta e seis anos, completados neste domingo do ano da graça de 2015, para devolver aos insensíveis o rótulo imposto a quem apenas tem a carteira vazia. E a riqueza de mil reais a lembrar que ninguém precisa de muito. Milhões e bilhões não compram a noite perfeita com a lua azul refletida no mar. Ela está ao alcance de quem souber olhar para o céu.
De graça são as lições das crianças. Elas estão por aí a nos ensinar que aprender tem a ver com não desprezar indagação alguma, de quem quer que seja. E buscar as respostas descomplicadas. Eu fico com a pureza da pergunta das crianças. É bonita, é bonita e é bonita.