O bom humor é uma das características mais marcantes do famoso jeitinho brasileiro, parece que gerações e gerações inconscientemente aprenderam a serem bem humoradas, mesmo com toda a dificuldade que é viver no Brasil.
Indo além da superfície, essa suposta cordialidade mascara diversos traumas sociais brasileiros, um deles é o jeito “bem humorado” que lidamos com nossas relações raciais. Sandra Dahia, professora da UFPB, pesquisa como o riso aparece como solução “bem humorada” para lidar com a nossa tensa relação racial. Segundo a pesquisadora, para a branquitude, lidar de forma bem humorada com a questão racial seria uma das maneiras de evitar o desgaste nessa complicada relação. Através de piadas e brincadeiras duvidosas o brasil conseguiria velar ainda mais o racial em sua democracia harmoniosa, evitando conflitos desnecessários. Não é à toa que em uma certa data do ano um trecho editado tendenciosamente fora de contexto de uma entrevista de Morgan Freeman faça muito sucesso.
Por essa cordialidade na identidade nacional brasileira, os setores dominantes da indústria do entretenimento produziram diversos estereótipos de pessoas negras em tom de alívio cômico para nossas relações raciais. Depreciando ainda mais a identidade negra no Brasil. Não é preciso elencar a quantidade de arquétipos caricaturais encontramos em novelas, filmes, literaturas e programas de tv para reconhecermos o insucesso dessas narrativas. O cordial tenta velar a racialidade do Brasil, mas não consegue.
O grande ponto de virada dessa sanha representativa vem acontecendo recentemente devido a conquistas históricas nas políticas afirmativas e pela maior possibilidade de organização através das tecnologias digitais, quando negras e negros expõem e criticam os privilégios da branquitude – categoria de análise social onde o indivíduo “o branco” passa a representar um grupo, “a branquitude”. E o humor, a ironia, o sarcasmo e o deboche aparecem como umas das artimanhas mais eficazes para essas críticas.
Segundo Lisimba Dafari é natural que “diante do profundo cinismo da sociedade branca — e embranquecida — com a questão do racismo” o deboche seja o melhor contra-argumento, “justamente porque quando sacamos que as “virtudes” eurodescendentes remontam ao menosprezo a tudo que não compartilhe de seu berço, desvelar o ridículo nessa suposta “superioridade” pode ser a única forma de nos fazer ouvir”.
A reação da branquitude enrijecida a essa virada de jogo vem sendo associar qualquer forma de manifestação contrária aquilo que se convencionou chamar de cultura do cancelamento. Alegando uma suposta infantilidade na tentativa de boicote destes jovens movimentos à qualquer valor hegemônico de nossa sociedade engessada, a branquitude tenta deslegitimar certas críticas.
É mais do que fato que a cultura do cancelamento é um problema discursivo – principalmente numa sociedade ansiosa e carente como a nossa –, mas quando pautas importantes são rotuladas como “meras tentativas de cancelamento” isso quer dizer mais sobre a manutenção de privilégios de poucos do que dar atenção a questionamentos de muitos.
É uma realidade que precisamos reorganizar coletivamente o uso que fazemos da internet como um dispositivo de engajamento social. Muitas vezes a avidez pelo reconhecimento fazem com que a crítica e a denúncia sejam táticas mais sedutoras e eficazes do que a criação e a proposição. As eleições de 2018 dão um exemplo do desfecho dessa repercussão reativa. A necessidade de comentar, opinar, se posicionar e principalmente discordar faz com que às vezes a pressa seja inimiga da perfeição.
Vemos a falência dessa tática quando preferimos denunciar ao invés de criarmos visibilidade para conteúdos criativos e originais. Sabemos que nessa equação são as pessoas negras em geral que ficam distantes dos holofotes, principalmente porque eles já foram projetados para destacar pessoas brancas que se autopromovem estruturalmente, conscientemente ou não, na manutenção de seus privilégios. Reconheço que existam mecanismos instintivos nossos que nos fazem atentar mais a notícias ruins, agindo como um mecanismo de defesa até. Mas não podemos ignorar que a tempos se discute o quanto as plataformas midiáticas estão se apropriando dessa nossa característica psicológica, por isso precisamos ser críticos e não cínicos com nosso consumo digital.
A cultura do cancelamento é bem mais complexa do que aparenta ser, não será aqui que tentarei ser conclusivo sobre esse assunto, mas o que mais chama atenção a essa questão é a maneira que a efemeridade do cancelamento atua quando age sobre figuras brancas reconhecidas. Devido aos pactos narcísicos da branquitude, como sabiamente apontou Cida Bento, uma pessoa branca estabelecida institucionalmente não conseguirá ser cancelada, sendo aliada ou não de pautas progressistas. Quem dera que de fato existisse uma varinha mágica de Wakanda que proporcionasse o simples desaparecer de figuras brancas bastiões da desigualdade racial brasileira.
Por isso, como Dafari sagazmente afirmou, o deboche é uma das poucas formas de questionar a supremacia branca sem usar sua própria retórica cínica. É uma das únicas maneiras de subverter tal autoridade sem fazer uso completo dessa mesma ordem. Já dizia Audre Lorde, as ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa grande.
É nessa rasteira de capoeirista que a branquitude surta ao deixar de ser vista como desejo e sim como deboche, tombando por completo de seu confortável pedestal. Lia Schucman, branca, acrescenta: “considerar que o branco pode ser alvo do desprezo é o medo branco […] a opção por não se misturar protege os brancos, pois só assim nossa branquitude não será colocada em questão”.
O medo do diferente distancia, cancela, principalmente em culturas que não estão acostumadas a viver o conflito de maneira que não seja bélica. O uso do humor e do deboche não acontece simplesmente para irritar o ego iluminado e iluminista da branquitude, ele é um reflexo discursivo que bebe na tradição africana em diáspora.
O filósofo queniano Odera Oruka aponta que uma das principais tendências da filosofia africana é a sagacidade, aquela que reconhece nos seus sábios como uma das principais funções da organização social. A sagacidade dos sábios e sábias da tradição africana reverbera atualmente na diáspora nas formas de reinvenção, que negras e negros precisaram criar para conseguir viver em um ambiente completamente desumanizador.
A sagacidade africana estar no lidar com o diferente como algo assimilador, não algo a ser totalmente repelido ou dominado. Isso não quer dizer que não exista conflito nas civilizações de origem africana, mas sim que o conflito não existe somente para a dominação do outro, mas como um exercício outro de competitividade. Dafari faz um apanhado histórico muito interessante sobre o deboche na cultura negra desde o The Dozens dos EUA até as rodas de rimas contemporâneas. Vemos nos sambistas, nos repentistas e nos jongueiros esse exercício da sagacidade através da habilidade de encantar com o humor toda uma comunidade.
Os griots, sábios da contação de histórias, reconheciam no humor um dos principais fatores da manutenção das tradições de uma comunidade, pois no contágio do riso proporcionado por anedotas, fábulas e mitos diversos valores ancestrais são perpetuados através das gerações. Não à toa, Azoilda Trindade quando sistematizou os valores civilizatórios africanos incluiu a ludicidade como um princípio para uma educação antirracista.
Brincadeira é coisa séria para as civilizações africanas, mas seriedade bem diferente da produtividade das civilizações ocidentais. É brincando que as infâncias aprendem, com os mais velhos, o funcionamento da vida. Levar a vida brincando torna toda a existência um ato mais descontraído, encantado. Desde o continente africano existiam diferentes ritos, canções e jogos ensaiados para encantar o árduo trabalho, para torna-lo algo uma coisa menos desgastante. Tradição essa que se perpetuou na dureza da diáspora com as work songs, os vissungos e outras formas de canções de trabalho. O riso é um dos encantos que ameniza o banzo.
Em manifestações culturais mais contemporâneas o humor foi usado de maneira crítica e contundente: dois dos principais escritores da literatura definitivamente brasileira – Machado de Assis e Lima Barreto, ambos negros –, eram exímios artesões da ironia como comentário e crítica social. A acidez de Lima Barreto foi tão perspicaz que o fez o amargurar o final da vida nos corredores da loucura.
Na própria indústria do entretenimento, rompendo com a tradição do “humor negro” dos blackface dos menestréis brancos estadunidenses, diversos humoristas negros norte-americanos fizeram história zombando a vida. No brasil não foi diferente, lutando contra a estereotia dentro dessa mesma indústria, que Tião Macalé, Mussum e principalmente Grande Othelo se tornaram artistas pioneiros, se tornando referência para novas gerações.
A resposta pro cinismo branco só pode ser o deboche preto. O humor, a ironia e o deboche talvez sejam as formas mais autenticamente negras de se questionar o racismo no ocidente. A comédia é uma das maneiras de se dizer o indizível, aquilo que não conseguimos expressar racionalmente, ou que não teríamos coragem de falar normalmente. É na travessura de exu, no miúdo da sincope do samba, no drible torto de Garrincha, na risada de criança, na magia negra de Sergio Vaz que todas as elucubrações paternalistas da branquitude são jogadas pra escanteio. É com esse repertório dissidente e debochado que corpos enrijecidos são postos pra sambar. Rindo de nós mesmos, nos tornamos mais lúcidos e menos inatingíveis, é um processo de reflexão, de autoconhecimento e auto crítica.
Deboche preto não é piada de mal gosto. Piada de muito mal gosto é o cinismo branco, é afirmar que a abolição foi feita pela Princesa Isabel; dizer que todos somos iguais, numa sociedade em que a maioria dos empobrecidos são negros; jurar que todos temos as mesmas oportunidades, quando a maioria das posições de poder são ocupadas por brancos; é dizer que existe uma democracia, quando a maioria dos direitos básicos da população negra não são respeitados; é falar que cotas são injustas, quando o privilégio branco foi erguido em cima das cotas para imigrantes europeus.
Acredito que a geração atual por compreender tais questões percebe que somente na organização entre si que acontecerá a emancipação do povo preto. É no ato de se aquilombar que pessoas negras encontram novamente o sentido político do coletivo, partilhando entre si essas outras possibilidades de vida. E o humor tem sido uma dessas táticas de partilha de sentidos comunitária.
Vejo a crescente de humoristas que estão partilhando entre a comunidade negra reflexões sobre o que é se posicionar coletivamente como negro. Provavelmente o maior expoente desse movimento é o comediante Yuri Marçal, mas existem diversos outros humoristas que comentam e criticam com humor sobre as relações raciais brasileiras, aumentando o seu alcance em públicos que não tem tempo para dominar a linguagem elitista e acadêmica que normalmente cerca esse tipo de debate.
Não é pensando em generalizar, nem tirar a complexidade de sentidos que é ocupar esse espaço de militância virtual, que trago essas considerações, nem tiro a possibilidade destes novos agentes estarem errados em algumas de suas posições. Como eu mesmo não estou passível de falhas. Tento aqui dissecar algumas complexidades do uso do humor, sem esquecer da maneira que ele foi apropriado historicamente em prol da branquitude. O caso estadunidense é interessante para se pensar sobre essa relação entre emancipação e apropriação: ao mesmo tempo que crescem o número de agentes e narrativas que usam o humor de maneira crítica como nas séries Atlanta, Insecure, I may destroy you, as produções da Netflix e etc, estas plataformas mantém seus altíssimos lucros. É importante pensarmos em formas de produção de conteúdos convidativos protagonizados por negras e negros, que consigam compartilhar de forma mais coletiva o poder estrutural de produção.
O humor, o deboche, a ironia e a sátira aparecem assim como fortes recursos em desestruturar as ações do racismo e potencializar a população negra com uma outra condição de existência. O bem estar precisa ser partilhado. Porque um sorriso negro, traz felicidade.
Referências
BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
DAFARI, Lisimba. Sobre esse tal “deboche”. Revista Òkòtó. 2019.
DAHIA, Sandra L. M. Riso:uma solução intermediária para os racistas no Brasil. Estudos e Pesquisas em Psicologia (Online), v. Ano 10, p. 373-389, 2010.
GOMES, Isabel Maria Jorge. Odera Oruka: o sábio e o filósofo. In: Seminário conhecimentos, sustentabilidade e justiça cognitiva. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2014.
TRINDADE, Azoilda Loretto da. Valores civilizatórios afro-brasileiros e Educação Infantil: uma contribuição afro-brasileira. In: TRINDADE, Azoilda Loretto da; BRANDÃO, Ana Paula (org). Modos de brincar: caderno de atividades, saberes e fazeres. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010.
SCHUCMAN, Lia Vainer. O que o ‘medo branco’ tem a dizer sobre lugar de fala, raça, Beyoncé e cancelamento. Folha de São Paulo. 2020.