Os mais de 10 milhões de brasileiros que se formaram no Ensino Médio nos últimos sete anos levaram da escola algo que não foi oferecido a quem se formou nas quatro décadas anteriores: aulas de Filosofia e Sociologia. Com a missão generalizada de “ensinar a pensar”, as disciplinas ainda esbarram em dificuldades para efetiva implantação em sala de aula, mas especialistas, professores e alunos já visualizam frutos.

“Ganha-se sempre, mesmo que ainda haja necessidade de ajustar conteúdos e profissionais a formar”, diz a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo, especializada na história da disciplina, Olgaria Chain Féres Matos. “Não há dúvida de que houve avanço”, afirma, na mesma linha, Juvenal Savian Filho, professor da Universidade Federal de São Paulo “Os problemas da nossa sociedade são grandes, mas certamente começamos a construir algo”, diz André Ricardo de Souza, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.

A ênfase dos três aos resultados positivos se dá depois de uma longa lista de problemas que as disciplinas ainda têm a enfrentar. Só o fato de ser apresentada aos alunos no Ensino Médio, etapa que reúne os piores indicadores da educação brasileira em termos de evasão e aprendizado, já impõe um obstáculo a todos os conteúdos para adolescentes, mas Filosofia e Sociologia têm um histórico difícil a vencer.

As duas áreas foram banidas do currículo brasileiro em 1971, pela reforma educacional feita pelo regime militar. Antes disso, filósofos e sociólogos já estavam entre os primeiros perseguidos desde o golpe de 1964. Aulas que ensinassem os alunos a fazer as próprias análises por diferentes vertentes e questionar políticas eram consideradas afrontas e punidas. Como substituta, foi criada a Educação Moral e Cívica (EMC) com conteúdos de doutrina patriótica.

Até aí, muitas outras foram as áreas prejudicadas pela ditadura, mas Sociologia e Filosofia permaneceram afastadas das escolas por mais 20 anos depois da queda do regime. A redemocratização começou oficialmente em 1985. Em 1988 foi promulgada a atual Constituição, em 1993 a EMC saiu do currículo e, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases delineou novos direitos dos estudantes, mas Sociologia e Filosofia não apareciam como disciplinas.

Só a partir dos anos 2000, redes particulares e estaduais começaram a inserir os conteúdos na grade e, em 2008, foi instituída a obrigatoriedade por lei. “O intervalo de quase 40 anos fez com que a escola perdesse todas as referências de como os assuntos eram tratados. Teve-se que começar de novo, sem materiais atuais”, comenta Souza.

A primeira questão que se impôs foi o currículo. O Ministério da Educação não define exatamente o que deve ser ensinado, apenas orienta que o professor percorra temas que envolvem vida, cidadania e arte com base nas principais linhas de cada uma das disciplinas. Savian Filho acha que este é o caminho para escapar do “achismo”.

“Boa parte das reflexões têm elementos da atualidade ou dão base para se refletir sobre o momento atual, mas se não forem apresentadas as questões históricas e como cada filósofo em seu tempo tratou dos temas, corre-se o risco do debate livre. Isso não é Filosofia”, explica. Ele frisa que a análise histórica mostra que não existe o bem e o mal ou o certo e o errado, a não ser diante de contextos, análises e paixões que são do indivíduo que faz o julgamento.

Olgaria define sua área como “uma interrogação sem conclusão” e a missão da Filosofia como “abertura de espírito para entender que a verdade nunca está de um lado só”. Ela defende que todos os estudantes têm direito a conhecer o patrimônio do pensamento acumulado pelos principais pensadores que se conhece e saber também como cada corrente questionou as anteriores. “Aristóteles e Platão terão sempre que ser estudados, mas foram questionados por Descartes (1595-1650), que foi questionado por Kant (1724-1804). As questões são muito mais importantes.”

Em Sociologia, Souza defende o mesmo. As bases teóricas dos pais da disciplina, Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim e textos contemporâneos que sirvam de “instrumental teórico” para tratar da vida em sociedade e temas como religião, trabalho, cidadania, lutas de classes e política.

A tarefa é considerada gigantesca por precisar fazer contrapeso à mídia e ao reducionismo das redes sociais que parecem levar cada vez mais a uma divisão da população diante de qualquer assunto. “Ao mesmo tempo que isso comprova a necessidade de ensinar a pensar e fazer análises embasadas, não dá para ignorar o tamanho do desafio”, comenta o sociólogo.

Para Olgaria, pesam também os problemas sociais que impactam na Educação e aumentam a falta de base cognitiva e informação entre os alunos. “É muito difícil pedir a um adolescente que saia do senso comum quando ele, muitas vezes, ainda tem dificuldade básica de interpretação e lógica. Mas ainda assim é preciso atuar e dar alguma base teórica que os alcance”, diz.

Outro problema de ordem prática é a falta de professores com formação específica. Quando Filosofia e Sociologia voltaram para o currículo do Ensino Médio, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) informou que, mesmo somadas, as disciplinas só tinham metade dos cem mil profissionais da área necessários. Cerca de 70% dos professores que passaram a dar aulas tinham formação em outras disciplinas como História e Letras.

No ano passado, um levantamento do Tribunal de Contas da União feito em todos os estados, exceto São Paulo e Roraima que não permitiram a investigação, revelou que o porcentual havia se invertido. Atualmente 70% dos professores do Filosofia e Sociologia são formados em uma das duas áreas correlatas. Os 30% restantes, no entanto, ainda são uma parcela bastante grande.

 

O professor Renato Fialho Júnior, formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro quando as disciplinas ainda estavam longe do currículo, em 1991, afirma que a insegurança e os salários desviam o interesse de mais profissionais. Ele trabalhou por mais de uma década como com sociólogo pesquisador em um instituto de pesquisas e começou a dar aulas há 10 anos. Atualmente trabalha em três escolas de Nova Iguaçu, na baixada fluminense, com 18 turmas diferentes, a maioria de Sociologia, mas quatro delas de Filosofia.

 

“Por mim, dava aula apenas de Sociologia e em menos escolas”, comenta. Ele reclama que, desde a obrigatoriedade, a rede estadual do Rio de Janeiro previa duas aulas de cada uma das duas disciplinas nas três séries do Ensino Médio, mas, em 2012, houve redução no primeiro e segundo ano, que passaram a ter uma aula cada. “Antes eu podia completar minha carga com duas escolas. Três se optasse apenas por Sociologia. Agora, preciso de três com as duas disciplinas para chegar a 40 horas e, ainda assim, o salário de professor não é grande atrativo”, comenta.

 

Para ele, as discussões sobre reforma do Ensino Médio e agrupamento de disciplinas são um risco para as áreas específicas depois de tão pouco tempo de retorno. “Na campanha presidencial, quando os candidatos falaram no assunto, as primeiras matérias que visualizamos como sendo fundidas foram as duas”, afirma. Ele também reclama da reação dos governos a movimentos grevistas ou mesmo protestos de alunos capitaneados por profissionais da área. “Querem uma sociologia que não questione, seria estelionato.”

 

Mais uma vez, Olgaria vê na falta de compromisso com as áreas um exemplo da falta de olhar crítico sobre o sistema escolar. “Temos um excesso de conteúdos de Ciências Exatas que nunca serão usadas pela maioria das pessoas e raramente alguém questiona, mas a Filosofia lida com as questões da vida. Uma área que certamente tem feito falta à nossa sociedade”, reclama. “Engana-se quem pensa que esses temas são familiares, eles exigem reflexão profunda e embasada, mas depois serão úteis em todos os dilemas.”

O professor de Filosofia Antonio Kubitschek, de Taguatinga, Distrito Federal, pode considerar que obteve sucesso no despertar da reflexão. Ele ficou famoso por colocar em uma prova um enunciado que chamava a funkeira Valeska Popozuda de “pensadora contemporânea” para provar aos alunos como a mídia julgava sem análise. Meses antes, ele havia previsto que os jornalistas convidados para uma mostra cultural no Centro de Ensino Médio 3, em que trabalha, não viriam, mas o procurariam para falar da questão de prova.

Os estudantes viram o episódio ganhar repercussão nacional e pessoas sem qualquer informação sobre o caso cometerem julgamentos precipitados e cheios de erros. “Eu me divertia com os comentários nas matérias, mas eles começaram a ser tão ofensivos que acabei por responder”, conta Gabriel Guilherme Barros Magalhães, 19 anos, que foi um dos alunos a receber a responder a avaliação polêmica.

Ele escreveu um comentário de seis parágrafos em resposta a centenas em um site de notícias. “A matéria dada pelo professor Antônio tratava a respeito da Teoria do Desenvolvimento Moral. Eu não vou explicar isso aqui, pois acham-se no direito de julgarem um professor de Filosofia, creio eu que devem ter conhecimento a respeito do assunto. No entanto, um dos tópicos foi o dilema de Heinz, proposto por Kohlberg”, dizia parte do texto que seguia explicando o dilema (roubar ou não um remédio que salvaria uma vida e como cada resposta denota um nível de moralidade).

Ao final, concluía: “O que acontece nesta situação é o mesmo: ‘Não devia ter colocado a questão na prova pois é um professor e isso é errado’ é o nível convencional, terceiro estágio, pertencimento ao grupo. Quando suas respostas a isso, como adultos, deveriam estar no nível pós-convencional, destacando o conflito entre a ética profissional e o direito que cada pessoa tem de exercer a própria vida, ou no sexto estágio do nível pós-convencional. Mas, infelizmente, como diz Kohlberg, nem todos os adultos atingem este nível, devido à educação e vida que recebem, em condições diferentes”.

Gabriel afirma que a resposta poderia ter sido dada por qualquer colega e que as aulas costumavam motivar a sala e fazê-los pensar além do obvio. Este ano, ele presta vestibular para Letras, mas acredita que as disciplinas que mais o moldaram foram Sociologia e Filosofia. “Me considero uma pessoa melhor pelo que aprendi. Mais ponderada e com uma visão mais ampla e abertura para os argumentos. Não moldou minha escolha profissional, mas é parte do ser humano que sou.”