O dia 28 de setembro foi instituído como o Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. Por que descriminalizar o aborto?
O médico Drauzio Varella, em artigo na Folha de S. Paulo de 26/08 deste ano, nos dá uma descrição horripilante das condições em que se processa o aborto clandestino no Brasil, que aqui reproduzimos na intenção de sensibilizar nossos leitores para a gravidade desse problema em nossa sociedade.
Diz ele: A técnica desses abortamentos geralmente se baseia no princípio da infecção: a curiosa introduz uma sonda de plástico ou agulha de tricô através do orifício existente no colo do útero e fura a bolsa de líqüido na qual se acha imerso o embrião. Pelo orifício, as bactérias da vagina invadem rapidamente o embrião desprotegido.
A infecção faz o útero contrair e eliminar seu conteúdo. O procedimento é doloroso e sujeito a complicações sérias, porque nem sempre o útero consegue se livrar de todos os tecidos embrionários. As membranas que revestem a bolsa líquida são especialmente difíceis de eliminar. Sua persistência na cavidade uterina serve de caldo de cultura para as bactérias que subiram pela vagina, provoca hemorragia, febre e toxemia. (…) A septicemia resultante da presença de restos infectados na cavidade uterina é causa de morte freqüente entre as mulheres em idade fértil. (…) se contarmos apenas os casos de adolescentes atendidas pelo SUS para tratamento das complicações de abortamento no período de 93 a 98, o número ultrapassou 50 mil. Entre elas, 3.000 meninas de 10 e 14 anos.
Considerando essas condições em que o aborto se processa em nossa sociedade e os riscos para a vida e a saúde de quem a ele se submete, fica evidente que o abortamento constitui uma prática social limite, decorrente de situações de absoluto desespero diante de uma gravidez indesejada.
As mulheres pobres que têm filhos aos quais elas não têm condições dignas de vida a oferecer são execradas como irresponsáveis e culpabilizadas por colocarem no mundo crianças que não podem criar adequadamente, a despeito de engravidarem e parirem em função da falta de informação e de disponibilidade dos métodos contraceptivos que lhes permitiriam planejar o tamanho de suas famílias.
São igualmente execradas, culpabilizadas e penalizadas as mulheres que engravidam e abortam em razão precisamente da ausência de condições para oferecer a esses filhos uma vida digna. Para as meninas, adolescentes e mulheres solteiras que se submetem ao aborto há um outro pressuposto nessa censura: uma condenação subliminar do exercício da sexualidade fora dos limites da reprodução desejada na unidade familiar.
Em todos os casos, a mulher torna-se ré – pelos filhos que teve ou pelos que abortou. E a punição ao aborto é a criminalização do ato, a humilhação e os maus-tratos sofridos no sistema público de saúde pelas mulheres que nele adentram com seqüelas de aborto mal realizado, a condenação moral e a indiferença pública diante das mortes e danos à saúde que o abortamento provoca.
A primeira constatação que se pode fazer em relação à questão do aborto é: a clandestinidade é cúmplice dessas mortes e seqüelas que a interrupção da gravidez realizada em condições inseguras produz entre as mulheres.
A segunda é que a clandestinidade, ao ser instituída por um conjunto de agentes sociais – em especial pelos legisladores – que em geral não são as partes diretamente interessadas, é produto da destituição desse sujeito (a mulher) do controle sobre o seu próprio corpo e reprodução, bem como da sujeição desse corpo a paradigmas religiosos, morais e filosóficos construídos à sua revelia. Há essa dimensão subjacente ao debate sobre o aborto que me parece fundamental e obscurecida: o autoritarismo que está por trás do direito de normatizar sobre o corpo feminino, que em geral os homens e as instituições religiosas se auto-atribuem. E a condenação moral que a gravidez interrompida produz se expressa na tolerância desses agentes sociais com o sofrimento, as seqüelas e, no limite, a morte a qual essa prática conduz.
Por sua magnitude e conseqüências sobre a saúde da população feminina – trata-se de uma das principais causas de morte de mulheres -, o aborto é um problema de saúde pública dos mais graves no Brasil e, enquanto tal, exige políticas públicas que assegurem o direito das mulheres à vida, à assistência médica adequada para a interrupção de uma gravidez indesejada. Políticas públicas que rompam com a hipocrisia reinante sobre esse tema, na medida em que o direito a um aborto seguro é exercido plenamente por todas as mulheres que podem por ele pagar, em geral mulheres das classes médias e altas da sociedade.
Em suas dimensões ética, religiosa, moral ou filosófica, o aborto é uma questão de foro íntimo e de direito individual, em relação a qual cada um se governa, no plano privado, de acordo com a sua consciência. Ao Estado laico e democrático de direito cabe apenas garantir que a interrupção da gravidez seja realizada em condições dignas.
Concordando com o slogan da Campanha 28 de Setembro – Dia pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe, coordenada no Brasil pela Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, reafirmamos: O aborto é um direito das mulheres que pode ser conquistado com sua solidariedade.