Abuso sexual e escravidão na Igreja: Freiras chilenas romperam o silêncio e provocaram comoção no país

Série de escândalos mobilizou sociedade e reduziu número de fiéis

Por Janaína Figueiredo, do O Globo

O padre Fernando Karadima sai escoltado após dar depoimento no qual negou, insistentemente por duas horas, a existência de abuso sexual. Foto: Christian Zuñiga / El Mercurio, Chile

Nesta semana, a Igreja Católica promoveu um encontro internacional para debater casos de abusos sexuais feitos por seus integrantes . Um dos pontos levantados na discussão é o descrédito que a instituição passa a ter ao não dar uma resposta firme à sociedade. Um dos exemplos que mostram isso é no Chile, onde, no meio do ano passado, foram revelados, por uma TV local, uma série de escândalos envolvendo abusos sexuais e morais dentro da Igreja. Mulheres revelaram terem sido vítimas destes assédios por parte de membros da comunidade eclesiástica – homens e mulheres – em âmbitos internos da instituição.

A divulgação dos episódios impactou na credibilidade da Igreja num dos países mais conservadores do continente. O descrédito foi maior entre as principais autoridades que, ainda hoje, minimizam, negam e tentam, segundo afirmaram analistas e jornalistas locais ouvidos pelo GLOBO, jogar o lixo para debaixo do tapete.

As denunciantes –  pelo menos 20 – tinham pertencido à Congregação das Irmãs do Bom Samaritano. Uma delas, Consuelo Gomez, de 38 anos, foi procurada pelo GLOBO, mas disse não estar em condições de falar sobre o pesadelo vivido. Ela, que passou por uma crise de anorexia após tentar, sem êxito, ser protegida pela congregação à qual pertenceu quase 20 anos, está atualmente em tratamento psiquiátrico.

Em entrevista ao site de notícias “Emol”, Consuelo admitiu ter sido abusada sexualmente por uma freira da congregação, durante uma viagem à Espanha.

— Fui abusada sexualmente por uma freira na Espanha, ela também era chilena e superior a mim na estrutura. Foram várias vezes. Todos sabiam e me obrigaram a calar-me. Me fizeram sentir culpada de tudo. Hoje entendo que não fui a única — disse a ex-freira, que tenta esquecer o passado através do trabalho de enfermeira, um ofício que aprendeu dentro da congregação.

Atualmente, a congregação está sob rigoroso monitoramento do Vaticano, segundo informaram recentemente meios de comunicação chilenos. As ex-freiras que se atreveram a falar revelaram uma dinâmica de funcionamento interno que as rebaixava praticamente à escravidão. No caso de Consuelo, além de um trabalho análogo ao escravo, também ocorreram abusos sexuais de homens e mulheres. As ex-freiras contaram sobre o inferno do qual saíram após constatarem que não receberiam qualquer tipo de contenção dentro da própria congregação.

Os relatos chegaram aos ouvidos de Ivo Scapolo, enviado do Papa Francisco ao Chile para ver de perto a crise em que mergulhou a Igreja local.

Em um programa da TV nacional do país, a ex-freira Yolanda Tondreaux assegurou que “um sacerdote um dia chegou perto” dela, tocou seus peitos e deu “beijos no rosto, chegando até os lábios”. Ela relata que o clérigo ainda tocou seu corpo e que sentiu “nojo”. Segundo ela, mais de 23 irmãs foram obrigadas a trabalhar como escravas de padres e após começarem a romper o pacto de silêncio interno foram expulsas da congregação.

No ano passado, a Justiça chilena começou a investigar casos que começaram em 2007 e envolvem um total de 113 padres acusados de terem cometido abusos sexuais. Importantes bispos do país são parte dos processos, já que teriam acobertado os crimes cometidos.

Na opinião de Federico Galende, professor de Filosfia da Universidade do Chile, “o país está vivendo o desmoronamento de suas grandes instituições, entre elas a Igreja”.

— Os escândalos eclesiásticos são parte de uma deterioração institucional maior e que inclui, também, as forças de segurança do país. Temos policiais acusados de terem roubado quase US$ 30 bilhões — comentou Galende.

O professor analisa que o Chile possui uma sociedade conservadora e individualista e que estas são duas caractéristicas que não ajudam na hora de promover transformações profundas. Já faz um tempo que as novas gerações, impulsionadas por uma esquerda que têm obtido bons desempenhos em eleições legislativas e presidenciais (embora não tenham conseguido eleger um presidente, mas sim, muitos deputados), tentam dar novos contornos a um país que aprovou sua Lei de Divórcio somente em 2004.

— Esses escândalos na Igreja horrorizam, principalmente, os mais jovens — frisou Galende.

A jornalista Consuelo Ferrer Duran, do “Emol”, foi uma das poucas que conseguiu entrevistar a ex-freira Consuelo Gómez, quando ela ainda estava em condições de falar publicamente sobre o assunto. A jornalista disse ter encontrado “uma mulher quebrada por dentro, muito afetada emocionalmente”

— O caso das freiras surpreendeu porque não se imaginava que os abusos tinham sido cometidos com pessoas da própria instituição eclesiástica — comentou a jornalista.

Segundo ela, “o escândalo teve repercussão porque chegou em momentos de forte empoderamento feminino no país, em sintonia com o que acontece em outros, como a Argentina”.

As consequências de mostrar os podres da Igreja chilena já são evidentes. De acordo com Marco Moreno, reitor da Faculdade de Governo da Universidade do Chile, “a Igreja Católica perdeu, pelo menos, 10% de seus seguidores e, hoje, o país vive, essencialmente, uma crise de fé”.

— Existe uma distância entre a população e a cúpula eclesiástica, que sempre se sentiu intocável, como outras elites chilenas. Hoje, muitos chilenos passaram a refugiar-se na religiosidade popular, cada dia mais longe do catolicismo tradicional — concluiu Moreno.

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