Definitivamente os tempos mudaram. A sociedade brasileira avançou, a democracia se consolidou e o movimento negro se faz presente nos quatro cantos do país. Ao que tudo indica, apesar dos percalços, das dores e dos sofrimentos que ainda se fazem presente em nosso cotidiano, o saldo das lutas empreendidas pelo movimento social país afora, é positivo.
Poderia listar um sem número de conquistas, mas vamos ficar sós nas emblemáticas: a aprovação, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal das Cotas raciais nas Universidades, a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei 10.639/2004, que instituiu o ensino da História da África e Cultura Afro Brasileira nas Escolas, a edição, pelo Poder Executivo do Decreto 4.887/2003, regulamentando a Certificação e Titulação das Terras Quilombolas e a criação de dezenas de Secretarias e órgãos públicos de Promoção da Igualdade Racial por todo o país. Tudo isto, graças à luta, a persistência e a garra de milhares de militantes e aliados, assim como da sensibilidade e compromisso social dos últimos governos, liderados pelos Presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luis Ignácio Lula da Silva.
Importante dizer que estes avanços só foram possíveis por estar ancorado na histórica Assembleia Nacional Constituinte, que produziu a tão celebrada Constituinte Cidadã, após intensos e acirrados debates. Ou seja, a democracia é e continuará sendo o grande esteio das conquistas sociais em tempos modernos. Sem que tivéssemos esse manto protetor que abrigou o processo democrático vivido até o momento, dificilmente teríamos percorrido com tanta firmeza o caminho atual. Mas, a demanda por justiça social é enorme e a dívida do país para com a comunidade negra é maior ainda e infelizmente a conquista da igualdade racial só é percebida enquanto miragem.
E são exatamente estes avanços, ao que tudo indica, que sinalizam para o encerramento de um ciclo, ao celebrarmos mais um 20 de Novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. As manifestações de junho, ainda latentes e mal resolvidas, onde milhões de pessoas foram às ruas protestar contra a mesmice que se instalou na política nacional, foi apenas um sinal, um alerta. E o movimento negro não está imune a estas intempéries. Se é verdade que tivemos avanços e conquistas, também é verdade que os setores conservadores e racistas de nossa sociedade, se rearticularam, reorganizaram e encontraram novas formas de assegurar seus privilégios. Ocuparam espaços importantes, tanto no governo quanto na sociedade. Vide a paralisação de toda e qualquer titulação de terras quilombolas nos últimos três anos e a conquista da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, onde instalaram um deputado dos mais retrógrados na sua presidência. Tudo isto sob os auspícios da tão propalada governabilidade.
Na sociedade, os dados são alarmantes e trágicos, segundo o Mapa da Violência 2013, publicados pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino Americanos, houve um decréscimo da ordem de 26.4% de assassinatos de jovens brancos no país, nos últimos 10 anos, enquanto na juventude negra o acréscimo foi da ordem 30.4% ou sejam foram 35.297 jovens negros assassinados, na maioria dos casos ou pela polícia ou por grupos de extermínio, que são formados basicamente por policiais. A intolerância religiosa, liderada pelos neo pentecostais, amplia-se de forma vertiginosa no país, atingindo de maneira dura as religiões de matrizes africanas e até mesmo a implementação da Lei 10.639, sem que sejam adotadas quaisquer medidas punitivas, apesar do uso intenso dos meios de comunicação para tal fim, meios estes que são concessão pública e estão sob controle do Estado.
Não há como esconder, é um preço muito alto para as conquistas que tivemos.
O que vimos na última Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial foi muito mais que um sintoma, foi um aviso. O modelo de discussão restrito e controlado, onde o tempo era o senhor da razão, sem que houvesse uma análise crítica do ocorrido entre uma conferência e outra, também não contribuiu muito para que houvesse uma reflexão profunda que identificasse as razões da nossa atual desmobilização, das dificuldades na relação com o governo e de como enfrentar os novos desafios.
Diante de tantas perguntas sem respostas, é que ficou a sensação de que encerramos um ciclo. Após tantas conquistas e avanços, o movimento negro não pode se contentar apenas com bolsa família e mais médicos ou com as denúncias e constatações de sempre. Acabou chorare. Como diria os Titãs, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, arte e igualdade. Igualdade traduzida no orçamento público para que possamos implementar as políticas públicas de ações afirmativas, igualdade traduzida na legislação que puna efetivamente àqueles que praticam o racismo. Igualdade na ocupação real de espaços de poder.
E neste sentido, teremos que inevitavelmente mudar o rumo da prosa. Apontar para o futuro, com a certeza de que o que fizemos bem no passado, não pode mais ser modelo para o presente. Construir uma nova agenda política, com novos atores, novos métodos e novas propostas é a nossa tarefa maior. Ter coragem para colocá-la em discussão aberta na sociedade é outro imperativo. E dialogar com todas as forças políticas antirracistas, retomando o caráter suprapartidário da nossa luta, deve ser muito mais que uma estratégia, mas um questão de princípio.
Axè!
Toca a zabumba que a terra é nossa!
Fonte: Blog do Zulu