Aos 31 anos, Joanna Maranhão, dona da melhor marca feminina do Brasil em Olimpíadas, anuncia fim da carreira com carta para a Joanna criança, onde relembra turbulência para superar abuso sexual, pressões, desafios e conquistas
Oi, Jujuca, tudo bem?
Impressionante como a imagem de você nadando, aos três anos de idade, com aquele pitó verde limão – que servia para sua tia avó, Nair, e sua vó, Nanita, poderem lhe enxergar nas competições de natação do clube Português – não me sai da cabeça. Aquele sorriso de quem competia motivada por pacotes de bala, aquela leveza de quem se sentia livre na água… E foi justamente essa lembrança que me fez te escrever, depois de muitos anos. Te escrevo para te falar uma coisa que você precisa lembrar para o resto da sua vida: VOCÊ NÃO TEM CULPA. Sei que você pensará isso várias vezes, sei que esse sentimento fará de você sua principal adversária, sei que esse pensamento terá o poder de tirar esse sorriso, mas confia em mim, você é forte o suficiente para superar tudo isso.
Você se sentirá muito só, às vezes, principalmente quando quiser dividir o maior problema da sua vida, aos nove anos. Vai achar que seu maiô estava muito cavado e que a mão do treinador, que passou por ele quando você nem sequer sabia o que aquilo significava, é fruto de um comportamento seu. Ser mulher é muito difícil e você descobrirá isso quando ainda é uma criança.
Os minutos nos vestiários do Náutico serão os piores da sua vida. Sem saber para onde ir, o que fazer e como agir, você resolverá silenciar. Na realidade, isso nem será uma decisão consciente. É uma fuga. Até dará uma vontade de falar, mas ninguém vai te ouvir. Não culpe as pessoas, isso faz parte da nossa cultura, que dificilmente trata desses assuntos com crianças. Nade. Por alguns anos, esse será o seu refúgio.
Quando tudo estiver lhe sufocando, a luta para ser mais rápida do que suas dores te fará crescer na carreira. Nessas horas, teu talento e dedicação te guiarão. Agora você nada por sacos de bala, mas isso não demora muito. Logo, logo você estará nas principais piscinas do mundo. Mas antes disso você terá que enfrentar alguns medos. O principal deles, de ficar só enquanto dorme, com medo que aquela mão volte a invadir o seu corpo.
É algo pesado demais para qualquer pessoa carregar só. Mas confia no teu treinador, Nikita. Sim, vocês vão brigar muito. Sim, vocês vão chegar a usar os jornais para se ofenderem, mas ele será a primeira pessoa da natação a te estender a mão. Será a ele que você vai precisar confidenciar, antes das etapas do Mundial na Coreia do Sul e na Austrália, que você não confia em homens. Não por uma birra ou marra, mas por se sentir ameaçada. Porque a ideia de ficar em um quarto lhe faz sentir-se em pânico. Ele parece durão, mas vai te acolher como poucos. Vai te botar nos braços. Vai tirar de você a sensação de solidão e medo que te fez perder o sono antes desse campeonato.
E creia: antes de ter idade para tirar a carteira de motorista, você será finalista olímpica, quinta melhor do mundo e verá muita gente te alçando ao status de “maior promessa da natação”. Parece louco, né?
Você deve estar se perguntando como alguém que está sofrendo tanto pode ter uma carreira vitoriosa. Pois é, é justamente nesse conflito que você notará que precisa superar seu maior adversário: você.
Às vezes, os elogios dos outros fazem a gente notar que precisa ser feliz de dentro para fora. Mas tenha consciência de que ninguém vai entender isso. O seu mergulho dentro de você fará com que despenque de “Namoradinha do Brasil” (nome péssimo, diga-se de passagem) para sinônimo de fracasso. Te acusarão de não aguentar pressão e isso te fará criar ódio da imprensa. Afinal, como esse bando de jornalistas pode chamar de fracassada e medrosa alguém que decidiu entrar numa luta tão intensa consigo mesmo? Mas calma… com o tempo você entenderá que ninguém te entende porque você nunca falou.
Do lado prático, para os olhos dos outros, você será uma atleta que foi a quinta melhor nadadora do mundo, aos 17 anos, mas que depois disso não evoluiu. Ninguém entenderá que você terá que enfrentar dois processos pesados de depressão. Poucas pessoas saberão que você se entupiu de remédio, quase se matou, para minimizar a dor interna. Você será apenas uma nadadora que perdeu cerca de 15 segundos. Por isso, fale. Fale para você, fale para o mundo. Você tem coragem para isso.
É evidente que você vai tentar desistir. A piscina, seu lugar favorito, virou seu carma. Aquela sensação de paz ao nadar terá dado lugar ao choro a cada competição, a cada treino. O sorriso da menina que nadava por um pacote de bala não existirá mais. Será nesse momento que Teresinha, mais uma vez, chegará junto. Você terá raiva, porque tua mãe não te permitirá abandonar as piscinas, mas anota o que estou falando: ela é tua heroína. Ela te mostrará a tua força.
E quando despertar essa certeza, você virará uma metralhadora. Lembra quando você se recusava a nadar, por não aceitar ordens do nada? Pois esse mesmo poder de decisão você usará para bater de frente com a Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos. Não lhe parecerá justa e idônea a forma como Coaracy Nunes presidirá a instituição. Aí te prepara, “neguinha”, pois você será perseguida em todos os níveis. Te acusarão de marra, dirão que você é problemática, te boicotarão com patrocínios… você será tão excluída que precisará recorrer a empréstimos para voltar a competir as grandes provas.
Mas se existe algo que tu consegues é superar dificuldade. Todo mundo vai duvidar de você, te rotular como acabada. Afinal, estarás com 29 anos. Qual atleta consegue se superar aos 29, depois de uma queda brusca? Você. Talvez esse desafio fará você nadar pra 4min38, no Pan-Americano de Toronto, em 2015. Falando assim parece fácil, mas você perseguirá isso por 11 anos. Ninguém mais acreditava. Afinal, aquele tinha sido o seu melhor tempo. Superou até mesmo o tempo que fez você fez em Atenas, aos 17 anos, e que te fez virar a maior promessa da natação brasileira. A marca que os seus traumas tinham impedido de você conseguir repetir por longos 11 anos. A medalha de bronze será um detalhe. Aliás, você sempre relativizou conquistas…
Quem poderia imaginar que você voltou a nadar como se estivesse sendo premiada por doces? Quem poderia entender que a água voltou a ser seu melhor refúgio? A realidade é que sempre serás teu principal estimulo e tua maior rival.
Aos 31 anos, mais uma vez, você sentirá medo. Não o medo causado por um criminoso ou por perseguição e muito menos por se sentir só. Você terá medo porque será nesse período que você decidirá iniciar uma nova vida. E, como nada é fácil para você, no meio desse turbilhão você ainda terá uma notícia que, mais uma vez, vai te colocar à prova: a sua maternidade será interrompida. Então muitos questionamentos virão, uma tristeza avassaladora também. Mas também terás a certeza de que tens coragem para superar tudo.
Nesse tempo, a gente volta a se encontrar para um novo recomeço. Longe das piscinas, é verdade. Chegou a hora de encerrar esse capítulo. Mas o desconhecido sempre nos motivou. É algo que servirá como combustível para os novos desafios que a vida colocará à sua frente.
Nunca será fácil, Jujuca. Mas você consegue.
A gente consegue.