A escritora argentina Selva Almada mergulhou no tema feminicídio em sua incursão pela não-ficção e estará em uma das mesas mais concorridas da Flip, que tratará sobre a violência de gênero.
por Marina Gama Cubas, da Carta Capital
Uma mulher chegar viva a qualquer lugar é uma questão de sorte. Essa é uma das conclusões da escritora argentina Selva Almada após três anos investigando o assassinato de três jovens no interior da Argentina dos anos 80.
As histórias de Andrea Danne, María Luisa Quevedo e Sarita Mundín se mesclam às recordações e experiências da autora no livro Garotas Mortas, lançado no Brasil pela editora Todavia este ano e um dos destaques da 16ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta-feira 25.
A obra é a primeira experiência de Selva no mundo da não-ficção e parte justamente da morte da jovem Andrea, que vivia na mesma cidade que a escritora durante a adolescência. Seu assassinato mexeu com toda a região na época.
“A violência de gênero era um tema que vinha me interpelando há vários anos, sobretudo o caso de Andrea. Era uma história que sentia que devia contar. Com o tempo surgiu a ideia de somar outros casos em um projeto um pouco mais amplo. Não de uma história só, mas sobre o feminicídio como fenômeno social”, conta ela, que é considerada um dos grandes revelações da literatura latino-americana.
O livro mescla alguns momentos de intensa dureza ao descrever como os crimes foram cometidos, com uma sensibilidade singular no relato de como era a vida dessas mulheres antes de serem mortas. “Eu entendia que as cenas eram muito difíceis de contar e que iria ser difícil para quem fosse ler o livro. Mas, ao mesmo tempo, eram necessárias porque o horror que viveram essas mulheres tinha que aparecer com toda a dureza e profundidade.”
Em uma das mesas da Flip – com ingresso esgotado nas primeiras horas, a “Amada Vida” -, Selva apresentará seu livro e falará sobre o feminicídio e o micromachismo de cada dia. Ela debaterá os temas com a filósofa Djamila Ribeiro, que tratará do feminismo negro.
Nesta entrevista a CartaCapital, além de falar da violência contra a mulher, Selva trata de temas como o aborto – assunto central hoje na sua Argentina, onde deve-se votar nas próximas semanas a lei que legaliza o aborto no país – o racismo, os setores minorizados da sociedade e os fenômenos sociais que tem provocado mudanças na forma de pensar de parte da sociedade argentina.
CartaCapital: ‘Garotas Mortas’ trata de três feminicídios no interior da Argentina, nos anos 80. De lá para cá houve mudanças significativas no seu país em relação ao tema?
Selva Almada: Por sorte sim, principalmente na última década. O tema começou a adquirir importância para toda a sociedade. Naqueles anos, esses assassinatos e crimes eram vinculados a algo íntimo.
Em geral os criminosos eram conhecidos da família e tudo permanecia reduzido ao âmbito familiar ou reduzido a “problemas de casal”. O nome que se dava a esse tipo de ato era crime passional, ou seja, havia toda uma ideia que era algo que vinha do mundo amoroso, com a cultura, com o ciúme, quase como um atenuante.
E nesse aspecto me parece que o panorama começou a mudar a partir do momento que a palavra feminicídio foi incorporada. Ao chamar esses casos por um nome particular, as pessoas começaram a entender o que ele significa. Além disso, a palavra foi muito usada nos meios de comunicação e isso fez com que a opinião pública também a incorporasse.
Hoje na Argentina há campanhas muito fortes. Há número de telefone gratuito que todas as mulheres podem ligar para pedir ajuda. Em 2012 foi sancionada a Lei do Feminicídio, que implantou penas mais duras para esse tipo de crime. A pena máxima de outros crimes na Argentina é de 25 anos de prisão, mas é perpétua para o feminicídio. Claro que isso não quer dizer que a lei sempre se cumpra, nem todos os casos, apesar de serem claramente feminicídios, passam por essa figura legal na hora de ir à corte.
CC: Você disse que as leis são importantes, mas não fazem tudo. Nesse sentido, acredita que a literatura pode ajudar em questões sociais problemáticas, como a violência contra a mulher?
SA: Acho que o universo literário pode abrir a porta para tratar de vários temas. Isso passa com o Garotas Mortas. Na Argentina muitas professoras levaram o livro para a escola e o leem com os estudantes.
O livro ajuda os educadores a falar sobre esse tema com os adolescentes, ajuda ao mostrar o contexto histórico. Assim como eles veem esses casos na televisão, há 30 anos isso já ocorria. Ajuda a conscientizar, mostrando que isso não é algo que acontece agora, mas é algo que está diretamente vinculado à cultura em que fomos criados. A literatura sozinha não é suficiente, mas sem dúvida há certos livros que abrem à reflexão ou que facilitam essa reflexão sobre alguns temas da atualidade.
CC: Por que optou mesclar suas lembrança com os casos que conta no livro?
SA: Bom, isso gerou uma aproximação mais íntima com as leitoras, que se sentem reconhecidas por mim. Não sou uma das vítimas de violência física, mas as histórias em que eu me envolvo no livro são as que muitas passam todo o tempo.
Por exemplo, ter medo de passar na frente de um grupo de rapazes, estar sozinha na rua, ou coisas que possam passar em um transporte público. Essas situações, ao lado de um feminicídio, de violência física ou psicológica, são muito menores em escala, mas também permitem tomar consciência de que essas pequenas situações armam a trama que permite o feminicídio.
CC: Você levou três anos para escrever o ‘Garotas Mortas’. Algum motivo especial?
SA: O livro me levou mais tempo pela investigação e foram casos que não aconteceram em Buenos Aires, onde vivo. Fazer a investigação pressupõe visitar os lugares. O fato de ter passado 25 anos do primeiro crime dificultou o contato com as pessoas que estavam envolvidas. Alguns já haviam mortos, como os pais das meninas.
Tampouco era uma época em que havia internet e para buscar informação a única maneira que tinha era ir às redações e buscar nos arquivos. Além disso, não é um livro que foi encomendado. Tive uma bolsa que acabou e finalizei o livro com meus recursos. Houve vários obstáculos.
Outra questão foi, depois de terminada a apuração, achar o tom do livro. Fiquei muito tempo provando maneiras e testando como iria entrelaçar os três casos no enredo.
CC: Seu processo de escrita é mais intuitivo e instintivo?
SA: Sim. Na verdade ocorreu com esse livro em particular porque era um gênero que nunca tinha trabalhado. Não estava muito segura de que ferramentas teria que usar. Mas isso acontece geralmente, com qualquer coisa que escrevo. Vou provando, analisando e errando até que finalmente encontro o caminho e o sigo. É uma maneira bastante intuitiva. Não posso trabalhar com ideias prévias, esquema de obra. Para mim, funciona mais ir escrevendo e vendo o que aparece, seguir essa pista.
CC: Em alguns momentos você relata a naturalização da violência contra mulher de uma maneira muito crua. Em outros, a narrativa sobre essa violência é mais amena. Por que optou por esse caminho?
SA: Não me interessava encher o livro de detalhes escabrosos, como costuma fazer a imprensa argentina, de contar os mínimos detalhes. Além disso, quando se está tão acostumado a ver na televisão ou ler nos jornais, isso contribui para a naturalização que provoca esse tipo de notícia. Não queria que o livro fosse exaustivo, denso, mas me parecia importante que ao longo dele aparecesse algumas cenas mais cruas.
Eu entendia que as cenas eram muito difíceis de contar e que iria ser difícil para quem fosse ler, mas ao mesmo tempo eram necessárias porque o horror que viveram essas mulheres tinha que aparecer com toda sua dureza e profundidade. É importante que quem lesse o livro tomasse a consciência da violência, da crueldade e do horror que nós, mulheres, somos submetidas.
CC: Parte de seus livros falam do homoafeto, do feminicídio e dos povos indígenas. Foi uma escolha tratar de temáticas importantes para os setores minorizados na Argentina?
SA: Nunca pensei ‘vou escrever sobre as minorias’, mas sempre me interessavam os personagens marginalizados. Por alguma razão, seja econômica, educacional ou de escolhas mais livres como Ladrilleros, que conta a história de amor entre dois rapazes em uma cidadezinha.
Me interessam personagens e situações que colocam sobre a mesa os preconceitos que atravessam os argentinos todo o tempo, sobretudo aqueles que ocorrem em cidadezinha muito pequenas em que a dupla moral, o duplo discurso, a hipocrisia e a religião católica estão presentes. Sempre se conta uma história que está na superfície, mas por debaixo há outra.
Temos uma frase que retrata muito isso: “cidade pequena, inferno grande”. Isso que se cozinha nesses lugares me parece super interessante para a narrativa e ficção acompanhado do interesse que tenho na minha vida pessoal e também como cidadã.
O tema de violência de gênero vinha me interpelando há anos, sobretudo o caso de Andrea, que é o disparador do livro. Quando comecei a escrever pensei que algum dia deveria escrever sobre ela, era uma história que sentia que devia contar. Depois surgiu a ideia de somar outros casos em um projeto um pouco mais amplo. Não de uma história só, mas sobre o feminicídio como fenômeno social. Foi daí que apareceu a ideia do livro.
Meu último livro publicado, El mono en el remolino: Notas del Rodaje de Zama (2017) surgiu de um convite. Me interessei primeiro porque admiro muito a diretora do filme, além do fato da obra ser baseada em uma novela argentina que gosto muito. Segundo, porque também me pareceu muito interessante o fato de eu ir ao local da filmagem em que a diretora trabalharia com indígenas, com não-atores que eram moradores daquele lugar. Queria ver o trabalho dessas pessoas que não têm relação com o cinema, queria ver como iam articular um filme com pessoas que não têm nada, estão muito renegados pelo governo e pela sociedade, há muito preconceitos em relação a eles.
O filme é rodado no noroeste, onde há um grupo indígena. Antes não se dava muita importância para essas notícias em Buenos Aires, mas faz anos que esses grupos se enfrentam com os governos das províncias que ficaram com suas terras, houve mortos. Era um tema que a maioria das pessoas da capital desconhecia, ao contrário do interior do país, onde se sabe em que condições vivem esses povos. Me interesso em trabalhar com esse tipo de personagem que tem muito pouco a ver com o mundo intelectual.
Por coincidência o filme e o livro foram lançados no ano passado, quando o assunto dos mapuches – indígenas da região sul da Argentina – e o desaparecimento de Santiago Maldonato ganharam o noticiário nacional e internacional, trazendo luz aos temas que envolvem os povos indígenas.
CC: Na Flip você vai dividir a mesa com Djamila Ribeiro, uma filósofa, que fala sobre o feminismo negro. Como a questão do racismo é tratada na Argentina?
SA: A proporção de afrodescendentes na Argentina é muito pequena. Havia uma população negra grande no século 19 e que, lamentavelmente, foi exterminada. Primeiro pela pela febre amarela e depois por serem mandados para a guerra contra o Paraguai. Restaram poucos descendentes dessa população, mas isso não quer dizer que não haja racismo.
Aqui ele aparece nas províncias onde há uma proporção um pouco maior de indígenas, como o sul, norte e noroeste sobretudo. Na Argentina também há muito racismo em relação aos imigrantes e aos povos vizinhos.
Em Buenos Aires há uma população grande de paraguaios, bolivianos e peruanos discriminados. Atualmente há imigrantes senegaleses rechaçados, a maioria trabalha como vendedores ambulantes e a polícia os maltratam muito. Sei que nos custa muito assumirmos, mas somos um país muito racista.
CC: Você fala no ‘Garotas Mortas’ que todas mulheres têm uma experiência de violência. Você viveu alguma situação desse tipo?
SA: Sim, muitas. Se pararmos para pensar, todas somos vítimas de machismo, seja o micromachismo, como chamam as situações que te falam algo na rua ou que te toquem no transporte público, até situações mais severas como ser agredida fisicamente ou estuprada.
Eu sofri muitos do que chamamos de micromachismo, tive chefe abusador… Uma das conclusões do livro é justamente isso: uma mulher chegar é uma questão de sorte, de um feminicida não ter atravessado seu caminho.
Acredito que nos custou muito reconhecer isso. Parece que passamos muito tempo sabendo que haviam mulheres que sofriam violência de gênero, mas não nos sentíamos envolvidas porque nunca um namorado nos havia agredido. Mas quando começamos a reconhecer que, de fato, nunca um homem me bateu, mas naquele vez no metrô um cara me tocou ou fulano me disse alguma coisa que me deu muito medo… Nos reconhecer nessas situações, pelo menos, nos ajudou a refletir sobre o tema, a nos envolver ao entender que não era algo que acontecia com algumas, mas que de alguma maneira nos passa a todas e todo o tempo. O movimento #MeToo é isso.
Agora na Argentina se discute a legalização do aborto. Essa campanha é igual: eu abortei, ou eu acompanhei uma amiga, minha irmã, minha mãe abortou… Isso faz com que nos reconhecemos como parte desse assunto.
Assim, reconhecer que fomos vítimas de violência de gênero em maior ou menor grau também nos faz mais reflexivas e mais lutadoras, porque nos sentimos parte dessa injustiça e dá vontade de querer mudar algo: não apenas por empatia, mas porque também aconteceu com você.
CC: Acredita que a legalização do aborto vai acontecer?
SA: Está tudo muito incerto porque na Câmara dos Deputados passou com uma pequena margem. O Senado, no geral, tem pessoas mais conservadoras. Eu, de todas as maneiras, sou bastante otimista e acredito que vai passar e a lei será aprovada.
CC: Esse movimento é muito forte na Argentina.
SA: Temos grupos feministas que trabalham há muitos anos com o tema do aborto e lutam para que deixe de ser um tabu. A grande e massiva adesão à “Maré Verde”, que é a campanha nacional pelo direito do aborto legal, seguro e gratuito, foi algo que ocorreu nos últimos meses. Se ano passado alguém me dissesse que estaríamos falando sobre a legalização do aborto e que isso seria votado na Câmara dos Deputados e seria aprovada… Há um ano era impensável.
Caso a lei não saia, já não se pode mudar tudo o que aconteceu. Nos últimos meses se falou de aborto até nos programas de fofoca, programas superficiais que só falavam das celebridade. A maior parte dos cidadãos entendeu que por mais que não esteja de acordo, porque sua religião te impede, sua moral, sua educação, o que for… Por mais que você nunca faça um aborto, há mulheres que fazem e há mulheres que morrem por fazer nas condições que o fazem. Não há volta atrás e isso é fantástico.
CC: A razão se sobrepôs a ideologias e crenças?
SA: Nestes últimos meses algo mudou na maneira de pensar. As pessoas não falam “sou a favor do aborto”, como antes. Ela dizem: “sou a favor da legalização do aborto”. A palavra “legalização” permitiu a aproximação de pessoas que não veem o aborto como uma opção para suas vidas, mas passaram a entender que outras mulheres podem querer e poderão fazer sem risco.
CC: Já escolheu o tema para o seu próximo livro?
SA: Estou com uma romance que comecei faz muito tempo e agora estou retomando. São três amigos que vão pescar em uma ilha e trata do que se passa com eles lá. Tem um pouco a ver com o universo dos homens, o que fazem, do que falam. Como minhas duas novelas anteriores – O Vento que Arrasa (Cosac Naify) e Ladrilleros (sem tradução) – tem a ver com o universo masculino, é a última obra de uma espécie de trilogia.