Acolher ou não a miséria do mundo? A resposta de uma africana.

Transcrição e tradução da fala de Fatou Diome, escritora senegalesa, no programa francês “Ce soir (ou jamais!)” em 24/04/2015, num debate sobre imigração e racismo em que a pergunta a ser respondida era: Acolher ou não a miséria do mundo? Transcrição e tradução de Liliane Gusmão para as Blogueiras Feministas.

Do Blogueiras Feministas 

Fatou Diome, respondeu a questões levantadas pelo escritor holandês Thierry Baudet, que como os outros convidados, manteve-se bastante impressionado com essa intervenção. Ela é a autora do romance “O Ventre do Atlântico”, que possui inspiração autobiográfica e fala sobre as esperanças, desafios e riscos da imigração.

O programa completo com a participação de Fatou Diome pode ser visto em francês no canal do youtube do programa “Ce soir (ou jamais!).

Neste momento, estamos numa situação. Isso que você diz reforça o extremismo, quando você diz que a imigração causa um problema. Também temos que ver as vantagens da imigração, porque quando eu trabalho na França, eu pago meus impostos aqui. Então, dos estrangeiros que estão aqui, pode haver uma parte que pode trabalhar e enviar ajuda a seus países de origem. Mas, a maioria paga seus impostos aqui. Os imigrantes se instalam no seu país, enriquecem o seu país, são cidadãos produtivos.

Depois é preciso ver que tem uma minoria, há mortos, sem dúvida. Mas eu queria sublinhar uma coisa, o seu discurso só é legítimo por causa do silêncio da África. E eu gostaria de expressar minha indignação frente ao silêncio da União Africana. As pessoas que morrem nas praias — e aqui eu meço minhas palavras: Se fossem brancos? A terra inteira estaria tremendo. Mas são negros e árabes que morrem, e eles valem menos.

Eu vim aqui em 2008, e disse que a União Européia com sua frota de guerra, com sua economia, se houvesse uma ameaça desses países teria como se defender. Então, se houvesse vontade de salvar as pessoas que morrem nas travessias do Atlântico e do Mediterrâneo isso já teria sido feito. Porque da mesma maneira que investimos na Frontex (1) poderíamos utilizar esses recursos para salvar as pessoas. Mas, espera-se que as pessoas morram primeiro, é preciso fazer com que saibam que vão deixá-los morrer, porque é uma maneira de tentar dissuadí-los. Mas, eu vou lhes dizer que isso não demove ninguém.

Uma pessoa que parte numa viagem e percebe que essa viagem lhe oferece um risco ou perda, essa pessoa pode achar o perigo absurdo e assim tentar evitá-lo. Mas quem parte pela sua própria sobrevivência, que considera que a vida que tem a perder não vale nada, essa pessoa tem uma força extraordinária, pois ela não teme a morte. E é exatamente por isso que devemos fechar completamente as fronteiras, exatamente por isso que seu discurso reproduz a ideia de que… é preciso salvar a África e a Europa.

Senhores, vocês não vão ficar isolados como peixinhos dourados na fortaleza européia. A crise atual nos mostrou isso. Nos dias de hoje a Europa não será mais poupada, enquanto existir conflitos em outras partes do mundo. A Europa não será opulenta, enquanto existir miséria em outras partes do mundo. Vivemos numa sociedade globalizada em que indianos ganham sua vida em Dakar, enquanto uma pessoa de Dakar ganha sua vida em Nova York e um gabonense ganha sua vida em Paris, quer o senhor goste ou não, é irreversível. Então, ou encontramos uma solução coletiva ou as pessoas terão que se mudar da Europa, pois eu tenho a intenção de ficar.

Quando alguém parte da África essa pessoa é escolhida, eleita para partir talvez por ser a mais desenrolada. Existe um clã ou uma família que deposita nela toda sua esperança. Eu vejo o senhor bem vestido e bem alimentado. Talvez, se o senhor estivesse passando fome com toda sua família, lhe imaginassem como o eleito para ser enviado para ganhar a vida e ajudar sua família a se manter. Então, é também um ato de solidariedade que está por trás quando deixamos alguém partir.

Schengen (2) me permite vir dar palestras em seu país, pois quando percebem que meu cérebro lhes convêm, vocês o utilizam. Mas, por outro lado, lhes incomoda a ideia de deixar esse meu irmão, menos escolarizado que eu, imigrar para trabalhar na construção. Então, seu país fica esquizofrênico, tentando separar os bons estrangeiros dos maus estrangeiros. Agora nós vemos os africanos que vem. Esses movimentos populacionais nós vemos. Mas nós não vemos o movimento contrário, o movimento dos europeus em direção aos outros países. Esse movimento é dos fortes, esses que têm dinheiro, esses que têm o passaporte bom.

Vocês vão para o Senegal, vocês vão para o Mali, vocês vão a qualquer lugar do mundo, ao Canadá, aos Estados Unidos. Por onde eu viajo, e eu viajo muito, eu cruzo com franceses, alemães, holandeses. Eu os encontro por toda parte desse planeta, porque vocês tem o passaporte bom. Então, é assim com o exotismo, a Europa arrogou-se do principio único e unilateral do exotismo. Os outros são exóticos, mesmo que na minha cidade natal não exista nada mais exótico que um holandês. Então, atualmente com as viagens modernas e a globalização, quando as populações pobres vem em direção à Europa: “Cuidado, existe o movimento de uma multidão! Temos que impedí-los”. Enquanto vocês, com seus passaportes e toda pretensão que isso lhes garante, desembarcam nos países do terceiro mundo, e ai vocês estão em uma terra a ser conquistada.

Então, nós só vemos os pobres que imigram, mas não vemos os ricos que vem investir nos nossos países. A África se desenvolve a taxas de 5% a 10%, não é mais uma progressão, é um superaquecimento econômico. Só que quando um país do terceiro mundo se desenvolve e não tem meios de gerenciar toda essa riqueza, é preciso uma engenharia, é preciso uma formação. É preciso uma população para instalar uma democracia para gerenciar esse superaquecimento. Vocês necessitam que nós continuemos dominados para dar vazão a indústria européia. Agora é preciso acabar com a hipocrisia. Nós seremos ricos juntos ou nos afogaremos todos juntos.

Eu acho que a África e a Europa estão como crianças se vendo num espelho deformado. Acho que já é hora da Europa começar a nos respeitar e parar de nos enviar o seu lixo industrial e que construa conosco verdadeiras indústrias, que a Europa participe desse desenvolvimento. E que a África depois de 60 anos da independencia pare de dizer que a culpa é dos outros. No fim, independência é responsabilidade. Se somos realmente independentes na África temos de nos responsabilizar por nossos destinos e isso não se fará sem os europeus, a Europa não existe sem a África. Os dois são ligados e o destino de um atravessa o do outro. Então, eu acho que deveria haver um acordo, eu sonho com um acordo de fraternidade. Sim, eu sei que isso é uma utopia, mas eu preciso continuar acreditando nessa utopia para ter coragem de continuar escrevendo todas as noites.

Porque escrevi “O Ventre do Atlântico” há quase doze anos atrás e quando eu falava de dezenas de mortos no Atlântico me disseram que eu exagerava. Agora se contam aos milhares e eu fico profundamente entristecida que enquanto autora eu respondo às pessoas usando as palavras de Schiller: “A dignidade do homem está em vossas mãos: zelem por ela!” .

Notas da Tradução

(1) Frontex: A Frontex, oficialmente Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia, é um organismo da União Europeia que visa prestar assistência aos países da UE na correta aplicação das normas comunitárias de controles nas fronteiras externas e de reenvio de imigrantes ilegais para os seus países de origem.

(2) Schengen: O Acordo de Schengen é uma convenção entre países europeus sobre uma política de abertura das fronteiras e livre circulação de pessoas entre os países signatários. Um total de 30 países, incluindo todos os integrantes da União Europeia (exceto Irlanda e Reino Unido) e três países que não são membros da UE (Islândia, Noruega e Suíça), assinaram o acordo de Schengen. Liechenstein, Bulgária, Roménia e Chipre estão em fase implementação do acordo.

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