Água de beber e de viver no Quilombo Santa Rosa dos Pretos

Não precisa muito mais do que alguns minutos para que o interlocutor se encante com o jeito despojado, o sorriso largo e a erudição genuína de Anacleta Pires da Silva, 52 anos, uma das líderes do Quilombo Santa Rosa dos Pretos, situado na zona rural de Itapecuru Mirim, distante 96 km de São Luís. Nos encontramos no Lab Café, cafeteria hipster encravada no coração da Vila Madalena, bairro boêmio da Zona Oeste da cidade de São Paulo. O céu cinzento trazia um prenúncio de chuva, daquelas que derramam muita água pelo chão. A mesma água que seria o mote de nossa prazerosa e intensa conversa.

Por Rosenildo Ferreira, do Papo Reto

Verônica Falcón (divulgação)

Nos cerca de 40 minutos de bate papo, Anacleta falou com empolgação sobre o projeto de vaquinha virtual (o vídeo pode ser acessado aqui) cujo objetivo é arrecadar R$ 130 mil para a construção de 15 poços artesianos em nove comunidades quilombolas do pequeno município. “Vivemos numa constante e permanente resistência para preservar as belezas da região e a nossa cultura”, diz ela. “E a inspiração para essa luta vem da ancestralidade”.

A água que tanto faz falta às cerca de 800 famílias da região já foi abundante neste território “inaugurado” por ex-escravizados e batizado de Santa Rosa dos Pretos. De acordo com a líder comunitária, relatos de ONGs e do Ministério Público (veja os links no final do texto), a escassez hídrica é fruto de uma série de abusos cometidos desde meados da década de 1940, com a construção da BR-135, que liga Belo Horizonte a São Luís. Além disso, é cortada pela estrada de Ferro Carajás, pela problemática Ferrovia Transnordestina e por linhões de energia da Cemar e da Eletronorte. “Os córregos e os igarapés foram assoreadas pelo desmatamento”, lamenta.

A titulação de uma área de 7,5 mil hectares (equivalente a sete mil campos de futebol) aconteceu somente em 11 de julho de 2014, com a publicação de portaria do Incra, no Diário Oficial da União. A medida, no entanto, está longe de ter representado uma solução para os dramas vividos pela comunidade. Anacleta lembra com saudosismo dos tempos de fartura, quando as castanhas de babaçu eram coletadas e usadas para gerar uma renda extra.

Tambor de crioula, no Quilombo Santa Rosa dos Pretos, no Maranhão (Imagem retirada do site  Papo Reto)

A boia era garantida com a plantação de mandioca, milho, arroz, feijão, abóbora e melancia. E toda economia girava a partir do escambo. Ou, como ela gosta de dizer, na troca baseada na preocupação do cuidar do bem-estar do outro. “Nossa vida era maravilhosa, vivíamos em meio a muitas riquezas, mas nos tornaram empobrecidos”.

Nesta altura da conversa, o tom descontraído, quase festivo e com pequenas pausas para degustar o bolinho de milho (que no descolado Lab Café é servido dentro de uma pequena marmita de alumínio) dá lugar à melancolia. A introspecção dura pouco. Os olhos de Anacleta e de sua colega de lutas, Maria Dalva Pires Belfort, que optou por um silêncio quase monástico ao longo do encontro, voltam a brilhar assim que começam a falar sobre o objetivo da viagem: promover a vaquinha na plataforma Catarse e engajar movimentos sociais da região Sudeste na luta travada pelos moradores do Quilombo Santa Rosa dos Pretos.

Em sua segunda viagem à cidade de São Paulo, Anacleta diz que já se sente mais acostumada ao vai-e-vem da multidão de carros e pessoas, além da profusão de edifícios. O roteiro incluiu até um giro pelo Aparelha Luzia, espaço de cultura e resistência, na região central. “Estou até pensando em passar uma temporada por aqui”, diz, antes de abrir um largo sorriso. Tudo brincadeira. Afinal, difícil imaginá-la longe de um habitat que lhe garante a conexão direta com o sagrado, com o poético e com a ancestralidade representada pela natureza e as tradições passadas de geração a geração ao som do tambor de crioula, do bumba meu boi e da festa do divino espírito santo.

No vídeo que ancora a campanha de crowdfunding é possível mergulhar numa parte deste ecossistema a partir de curtos depoimentos dos moradores. Além de Anacleta e Maria Dalva (que dessa vez solta o verbo e a voz!), lá estão Seu Chicocó, mãe Severina, Elias Belfort, Seu Loro…

 

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