À moda de Duchamp, vídeo do primeiro álbum da parceria entre Beyoncé e Jay Z subverte a arte
Por Clarissa Wolff , da Carta Capital
Na primeira vez que eu fui ao Louvre entrei sem prestar muita atenção em que porta passava e caí no Denon. Fazia anos que queria visitar a França, uma vontade inexplicável alimentada desde a primeira vez que pedi para aprender francês (eu tinha um cinco anos), cada vez mais forte por uma crença sem qualquer lógica de que eu tinha vivido na França em alguma vida passada (ou em todas).
As aulas de História da Arte, por três anos engrandecendo minhas manhãs, me deixaram apaixonada pela arte francesa mais do que por qualquer outra (desculpa, italianos), e eu era o maior clichê do mundo naquela primeira visita a Paris: o francês arranhando, soltando bonjour pra lá e pra cá como a Bela em A bela e a fera, ansiosa por conhecer cada um dos pontos turísticos. Sim, fui ao D’Orsay, considerado por tanta gente o melhor museu francês, mas eu morri foi pelo Louvre.
Caí de cara no Denon, na sala das pinturas francesas em grande escala, e preciso confessar: eu não estava preparada. Cada Delacroix gigante fazia meu coração parar por alguns segundos. Ingres. Jacques-Louis David. Eu chorei, no altar de um dos mais importantes castelos da monarquia francesa, no altar iluminista da supremacia da arte branca, da cultura ocidental, de tudo o que significa beleza e que eu aprendi, ano após ano, com tanta dedicação.
A coragem combativa e explícita da denúncia de This is America, do Childish Gambino, é inegável. E todo mundo que é um pouco politizado é obrigado a aplaudir de pé essa verdade violenta.
Apeshit, de Beyoncé e Jay Z, já não fala de racismo na forma de tiros e sangue. Eu poderia falar que Apeshit, cujo título foi tão ridiculamente traduzido como “fezes de primatas”, poderia ser sobre cagar no altar da supremacia da cultura branca, e eu não estaria completamente errada (embora estivesse abandonando a elegância em prol da provocação).
A violência de um racismo silencioso construído por décadas – não, por séculos de glorificação de uma arte de brancos, sobre brancos e para brancos também mata. Mata de uma forma menos óbvia que a arma com bala e gatilho. Mas mata.
Kanye West declarando que é Deus ou Jay Z e Beyoncé se elevando ao nível da Mona Lisa, mostrando uma consciência lúcida de que também ficarão como uma marca icônica na história cultural do mundo, mexe no altar da branquitude sagrada.
No Louvre, são as pessoas que são descartáveis, decorativas, enquanto os quadros são protagonistas: os anos de história, o contexto político, a maestria artística e o poder simbólico como o verdadeiro valor.
Em Apeshit, a lógica é inversa. Os quadros é que são decorativos, como se desvalorizados, merecendo apenas o papel de um fundo bonito para um vídeo. As obras de arte, aqui, são Jay Z e Beyoncé, cada um dos quadros brilhantemente reduzidos a um clichê.
Mas a própria Mona Lisa é exatamente isso. Com um sorriso enigmático que permeou tantas outras obras de Da Vinci, ela só se tornou icônica após um roubo, cuja cobertura sensacionalista da mídia alçou o quadro ao status de celebridade.
A própria existência de Beyoncé é um resultado direto da escravidão e da colonização francesa (sua mãe é de Louisiana), tão ampliada pela expansão do reinado de Napoleão pela Europa, Caribe e norte da África.
Em Apeshit, Beyoncé dança cantando que “não acredita o quão longe conseguiu chegar” em frente a um dos mais impressionantes quadros do período neoclássico: aquele em que Napoleão toma o papel do papa e ele mesmo coroa sua mulher, Josephine.
A Coroação de Napoleão (1807), de Jacques-Louis David, tem quase dez metros de largura e seis metros de altura, uma imponência desafiadora. Aqui, ela é reduzida a uma pintura qualquer de parede, diminuída pelo poder real que a mulher na frente (posicionada estrategicamente sobrepondo Josephine, a coroa quase na sua cabeça) demonstra, a despeito de séculos de opressão.
Vênus de Milo, Nike de Samotrácia. Todo o descaso com a história branca imposta através da tortura é desafiada com uma coleção de homenagens à história negra invadindo o disco: referência a Dr. Dre, Migos, Snoop Dogg, Biggie Smalls, Malcolm X, Michael Jackson, Martin Luther King, o assassinato de Michael Brown, Black Lives Matter. Essa é a história que importa.
É só no fim do vídeo que eles finalmente se viram e encaram a Mona Lisa. A cena dura um segundo, irrelevante em tantos minutos de desprezo. Mas é só isso que ela merece.