Médica e diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, 59, foi chamada a falar à CPI da Covid no dia 24 de junho como representante do Movimento Alerta, grupo formado por 12 organizações médicas e de direitos humanos que compilou dados sobre o que chamam de mortes evitáveis.
“Claro que a epidemia no país levaria algumas pessoas e que o vírus produziria mortes, mas, na nossa análise, vemos um excesso de vidas perdidas, resultado de negligência. Há medidas que poderiam ter sido tomadas e não foram, como testar o máximo de pessoas e aparelhar melhor o SUS (Sistema Único de Saúde)”, diz ela a Universa. A análise feita pelo Movimento Alerta foi uma solicitação da própria comissão.
Na entrevista a seguir, Werneck fala dos esforços que teve desde o início da pandemia, quando alertou o Ministério da Saúde, a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Fundação Palmares sobre a necessidade de se proteger grupos vulneráveis — população negra, moradores de favelas, indígenas, entre outros — para evitar a tragédia que previa. “Nunca responderam”, diz.
Há um desprezo maior por essas vidas e isso tem uma origem: o racismo. Quem mais morre não são brancos. Estão nas periferias, já morriam mais antes da pandemia por outros tipos de violência e desassistência de diferentes áreas, entre elas a saúde.
Um dos nomes mais importantes do movimento de mulheres negras no Brasil, ela diz que, apesar de lidar diretamente com mazelas que atingem a população, conserva a esperança, uma herança de família, para continuar sua luta. “Minha bisavó nasceu em 1888, ano da Lei Áurea. Na minha infância, ela contava a história da vida dela para eu dormir. A mãe foi escravizada. Era só tragédia, parecia filme de terror. Mas sempre penso que conquistamos espaço porque ela não desistiu, assim como minha avó e minha mãe.”
Universa – O que é o Movimento Alerta?
Jurema Werneck – O Alerta é uma reunião de organizações que hoje já conta com centenas de apoiadores. Publicamos um anúncio em grandes jornais do país chamando a atenção para que se colocasse em prática questões para proteção de vidas durante a pandemia. Um dos pontos é testar em massa a população para covid, que é o básico da vigilância epidemiológica. Outros são cuidar melhor do sistema de saúde, aparelhar o SUS, evitar filas de pacientes, garantir a contratação de profissionais suficientes para as UTIs (Unidades de Terapia Intensiva). Dizíamos também que não salvar essas vidas, não tomar essas medidas, geraria uma responsabilidade.
Como pretendem contribuir com a CPI da Covid?
O movimento tem trabalhado em uma análise dos excessos de mortes da covid-19 e a negligência das autoridades. Olhamos para o Brasil, depois para os estados e aí fomos ver o que aconteceu. Claro que a epidemia levaria algumas pessoas e que o vírus produziria mortes, mas, na nossa análise, vemos um excesso, por isso são mortes evitáveis.
A ideia é olhar para trás, apontar o que foi feito de errado, para garantir que possa mudar a partir de agora. Ainda há muitas vidas para serem salvas.
Quem deve ser responsabilizado pelo excesso de mortes que o grupo aponta?
Todos aqueles e aquelas que não tomaram decisões que deveriam ter sido tomadas no momento certo. A gente está olhando para o Ministério da Saúde, mas tem que olhar para tudo. Pensar, por exemplo, na questão do auxílio emergencial, que foi entregue na mão de um banco. Banco não sabe fazer política pública. O que vimos foram filas e mais filas. Aí tinham que fazer cadastro na internet. Quantas dessas pessoas que precisam do auxílio têm acesso à internet? Em última instância, a responsabilidade é do governo federal, do presidente. Epidemia é de responsabilidade federal. Vai delegar isso para quem? Para o presidente da associação de moradores?
Em maio de 2020, a Anistia Internacional Brasil propôs uma agenda de ações às autoridades para proteger populações vulneráveis — negros, pobres, indígenas, moradores de rua — dos impactos da covid. O que propuseram e que respostas tiveram?
Naquela época estava um salve-se quem puder. Eram repetidos os protocolos: ficar em casa, lavar as mãos, usar máscaras. Mas dizer isso genericamente não funciona. Tem que dar orientações partindo da realidade da pessoa. A população negra, por exemplo, estaria mais exposta, porque já apresenta indicadores mais negativos de saúde em relação aos brancos. Vivem em condições mais precárias para prevenção, isolamento social, higiene, e uso de máscara. Listamos sete pontos, um deles era sobre impedir o tratamento desigual e outro sobre garantir a participação social nas decisões. Mandamos essa agenda para o Ministério da Saúde, para a Funai e a Fundação Palmares. Estávamos dizendo para as autoridades: pergunte para quem vive essa realidade. Essa agenda não foi respondida.
Qual a relação entre mortes por covid e racismo?
Há um desprezo pela vida negra, de pessoas pobres, favelados e faveladas, que é mediado pelo racismo. Tem origem e o peso de uma ideologia que vem de muito tempo. A maioria das pessoas que morrem por covid não são brancos. Estão nas periferias, já morrem mais por outros tipos de violências e desassistência de outras áreas, como a da saúde. São os que mais utilizam o SUS, que já vinha num histórico de precariedade. O sistema não estaria preparado para recebê-las e aconteceu o que estamos vendo, filas em UTI, falta de oxigênio. São populações que pagam o preço mais alto por ser brasileiro. A ação do Estado não apenas não protege como desprotege e, no limite, ataca nossas vidas. Aquela operação policial truculenta que atingiu o menino João Pedro com tiros de fuzil e o que aconteceu em outra operação no Jacarezinho foram ataques.
Há negligência também em relação à vacinação?
O Ministério da Saúde optou pelo critério de idade, e não está incorreto, mas é insuficiente para entender a vulnerabilidade. Um estudo da USP (Universidade de São Paulo) mostra que há bairros periféricos em que as chances de uma pessoa idosa morrer é maior do que moradores do centro. Então só a idade não resolve. O critério tinha que ser mais sofisticado. Há populações que, apesar de ter mortalidade mais alta, entraram na fila.
Como médica, qual sua visão em relação à condução da pandemia pelas autoridades brasileiras?
Estamos diante de uma epidemia sem controle. Vimos um governo federal que não fez o que devia. As informações que foram trazidas pela CPI até agora mostram que muita coisa deixou de ser feita. Não precisa supervalorizar a ciência. Ciência é um método de conhecimento, pelo qual se desenvolve uma metodologia que produz resultado, divulga, outras pessoas pegam a receita do bolo e fazem o mesmo. Desprezar o conhecimento, ainda mais diante do desconhecido como foi na pandemia, é irresponsabilidade. E o resultado só dá nisso: Brasil liderando a produção de mortes no mundo.
E qual a sua visão como ativista dos direitos humanos?
Direitos humanos é direito à saúde e à vida. Se tivesse tido isso como eixo, se tivesse sido priorizado o direito à saúde e à vida de cada pessoa que vive nesse país, a tentativa seria de salvar as mais de 200 milhões de pessoas. Mas aí teria que começa a pensar: quem são essas pessoas? São diferentes grupos, com desafios diferentes para a proteção. Aí seriam colocadas em funcionamento políticas públicas customizadas para cada grupo. O Brasil tinha as ferramentas para isso. Estão desmontadas, precarizadas, mas era só investir. Poderia ter sido diferente.
Você perdeu sua mãe há 44 anos, quando ela sofreu um aneurisma, justamente pela falta de acesso adequado a um serviço de saúde. Como isso influenciou sua trajetória de médica e sua luta contra as mortes evitáveis?
Não sei se a morte dela foi evitável, mas ela poderia ter tido alguma chance. Tenho a memória viva dela falando o que sentia, eram dores de cabeça excruciantes, entre outras coisas. Meu pai era porteiro de um hospital e pedia favores para que fôssemos atendidos pelos médicos de graça quando houvesse brecha na agenda. Isso foi antes da criação SUS. Cuidaram da minha mãe com analgésico. Na faculdade de medicina, estava estudando neurologia e tudo que ela dizia sentir estava lá como sintomas de ruptura de aneurisma cerebral. Essa foi a morte mais traumática da minha vida, mas não foi a única. A experiencia da negligência, de não ter chance, marca a vida das pessoas negras. Meu pai tentava marcar consulta para a vizinhança toda, ninguém tinha acesso. O SUS é nosso sonho, é nossa luta. Imagina se não existisse, onde nós estaríamos agora? É o SUS que está dando conta de responder à pandemia.
O que te dá esperança para seguir com seu trabalho?
O que me inspira é o fato de, contra tudo e contra todas as forças, ainda estarmos aqui. Perdi minha mãe cedo mas convivi com minha bisavó até ela morrer, aos 101 anos. Ela nasceu em 1888, ano da Lei Áurea. A mãe tinha sido escravizada. Minha bisavó contava a história da vida dela para eu dormir. Era só tragédia, parecia filme de terror. Eu sei que agora as coisas estão muito ruins, falta muito para ser bom, mas falta menos do que no passado. A gente conquistou espaço porque ela não desistiu, assim como minha avó e minha mãe. Penso nisso sempre. É isso que me inspira. A gente força o caminho da justiça.