Albinismo e relações raciais: Subjetividade, pertencimento e aspectos sociais

Albinismo é uma alteração genética hereditária, causada por gene recessivo, na qual a pessoa não produz melanina, que dá cor aos pêlos, cabelos e pele. A condição quase sempre afeta a visão, pois a falta de pigmentação atinge a retina, causando a baixa visão². Também pode haver nistagmo³, estrabismo ou fotofobia.

Há aproximadamente 7 genes envolvidos na condição do albinismo, tendo assim uma diversidade entre as pessoas albinas, inclusive no que diz respeito a tonalidade dos cabelos e da pele. A condição está presente em várias etnias e em muitas espécies do reino animal.

Sobre a quantidade de casos por pessoa, não há estatísticas e sim estimativas, variando entre 1/17.000 e 1/20.000 habitantes. Em África as estimativas são de 1/10.000 habitantes. Assim como no continente africano, é percebido no Brasil uma prevalência da condição em famílias negras.

Para além das definições, há muitos aspectos a serem explorados para abarcar a diversidade do que é ser uma pessoa com albinismo. A escritora nigeriana Chimamanda Adichie fala do perigo da história única ao contar como foi importante entender que algumas pessoas em muitos países entendem o continente africano a partir de uma narrativa única de pobreza, doenças e desumanização. A escritora ressalta ainda que os estereótipos abrangem parte de um todo, mas são utilizados como se definissem o todo. Ao ler o texto dela, comparo as narrativas que são feitas sobre pessoas com albinismo. Há uma quantidade de crenças, estigmas, desconhecimentos que aparecem em discursos diversos, independente do grau de escolaridade das pessoas. Há uma tentativa em muitos espaços de universalizar o que seria o albinismo.

Assim, convoco aos questionamentos: Que histórias têm sido contadas sobre as pessoas com albinismo? Quais produções de conhecimento têm sido realizadas? Onde têm estado as oportunidades de contar nossas histórias? 

 

Albinismo e negritude

Atualmente me interesso por discutir sobre albinismo e relações raciais. Essa questão também está diretamente ligada à subjetividade, a pessoa com albinismo em muitas situações vive um “não lugar” em uma família negra, por vezes não é vista ou não se vê como negra, mas também pelas características do cabelo e traços, não é lida como branca.

A psicanalista Neuza Santos Souza (1983) discorre sobre a característica do negro brasileiro, que influenciado pela cultura que liga aspectos da negritude ao que é negativo, tenta se afastar dessas características querendo atingir um ideal branco. Por 26 anos da minha vida alisei o cabelo e utilizei químicas para reduzir o volume. Assim como, por muito tempo queria fazer uma cirurgia para afinar o nariz. Que fenômenos operam nessas questões de afastamento da raça, que não o racismo estrutural? 

Há uma prevalência do albinismo em famílias negras, então é necessário poder problematizar o lugar da pessoa com albinismo na identificação racial. Por muitos anos eu quis me afastar da negritude, e consequentemente do albinismo, ocupando um lugar de parecer “gringa” e atribuindo valor a essa classificação.

Não sofro racismo individual e cotidiano, que muitos negros passam, uma vez que no Brasil o racismo é mais violento quanto mais a pessoa tem a pele retinta e traços negroides. Apesar de fazer essa diferenciação, acredito na importância de reivindicar meu lugar de negritude para reconhecer minha ancestralidade, valorizar meus traços, minha família e nossas características. Assim, é possível ir na contramão de um ideal da branquitude que desvaloriza o negro. Sueli Carneiro (2004) no texto “Negros de pele Clara”, questiona a aceitação da diversidade da branquitude e o questionamento feito em relação à diversidade da negritude. Ela compreende que o não reconhecimento da diversidade divide o movimento e enfraquece a luta. A identificação racial entre negros de pele clara é essencial para o fortalecimento da luta antirracista, resguardando toda a difstinção da violência do racismo entre as diferentes tonalidades de pele. Identifico que reconhecer minha ancestralidade me fortalece a cada dia e leva a reflexão da diversidade presente na negritude.

Uma pessoa albina com descendência branca, por exemplo, italiana, não tem nenhuma dificuldade em se sentir pertencente ao seu grupo racial e a sua ancestralidade. Usufruindo de benefícios como cidadania italiana e passaporte europeu. Por que as pessoas negras com albinismo têm seu pertencimento racial questionado? Que elementos operam no Brasil, que negam a pessoa com albinismo de descendência negra seu direito à ancestralidade e a pleitear acesso a políticas que são destinadas a pessoas negras?

No continente africano ou nos EUA, não há dificuldade na identificação de uma pessoa com albinismo como negra. Apesar de situações de discriminações e agressões que há com pessoas albinas em alguns lugares do continente africano.

No Brasil, muitas pessoas com albinismo sofrem as consequências do racismo estrutural em famílias negras. Há falta de informação em relação ao cuidado com a pele, com a visão e falta de recursos financeiros para a compra de protetor solar. Nas escolas quase sempre não há recursos didáticos apropriados, tal fato, muitas vezes causa evasão escolar. Além disso, a falta de inserção no mercado de trabalho pode levar a atividades inadequadas com exposição ao sol.

Há ainda, famílias negras que não compreendem o nascimento de uma criança albina, pode haver desconfianças, discriminação e desconhecimento sobre cuidados específicos.

 Os cuidados são essenciais às pessoas com albinismo, pois em algumas situações elas podem ter câncer de pele, devido à exposição ao sol e em casos agravados chegar a morte. Muitas vezes, tais fatos ocorrem, porque esses sujeitos exercem trabalhos expostos ao sol por falta de outras oportunidades ou alternativas. 

 

Deficiência visual e capacitismo

“Ela tem baixa visão e mesmo com óculos ela não enxergará direito, não esperem muito da escolaridade dela, se ela concluir o fundamental será ótimo.” 

Com essa frase, meus pais souberam pelo oftalmologista que eu tinha baixa visão, quando eu era criança. Essa é a visão biomédica da deficiência, que considera somente o que o corpo apresenta como limitação. Médicos, professores, familiares e sociedade em geral devem compreender que a visão subnormal requer recursos auxiliares, mas não incapacita. Aliás o que exclui e promove falta de acessibilidade é o capacitismo, termo que define a segregação das pessoas com deficiência a partir da hierarquização dos corpos e suas funcionalidades. 

O modelo social da deficiência avançou em relação ao modelo biomédico, entretanto ainda nos deparamos com práticas capacitistas, com materiais escolares sem fonte ampliada, a falta de preocupação com contrastes em textos e mídias, postos de trabalho sem materiais ampliados e protegidos do sol, meios de transporte e repartições públicas com letreiros pequenos ou sem referências com áudio. Esses são alguns exemplos da falta de preocupação com a diversidade de acesso, que historicamente tem dado prioridade há formas consideradas “normais” de contato e inserção social.

Por vezes acreditamos que devemos nos desdobrar para conseguir ler ou realizar determinada tarefa, nos culpando e nos achando incapazes de exercer alguma função, quando na verdade não nos são dadas ferramentas de acesso. Uma escola por exemplo, não tem que atender somente quem tem 100% da visão, deve estar atenta à diversidade e dar possibilidade para que todos os alunos acessem o conteúdo. 

A crença que a incapacidade é nossa se torna uma ferida na construção da nossa subjetividade com consequências que afetam a autoconfiança, o auto amor e as relações interpessoais. Por muito tempo me sentia mal por não conseguir ler algum material, agora entendo que determinada mídia não é acessível. O capacitismo é causado por quem não promove acessibilidade e não por quem não consegue acessar. 

Meus pais não me deixaram paralisar diante da fala do oftalmologista, eu segui estudando. Mas é importante pensar: quantos ficam pelo caminho acreditando que a deficiência definirá sua capacidade e autonomia?

Quando foi necessário acessar ações afirmativas, eu optei por concorrer à vaga pelas cotas de pessoa com deficiência, até mesmo pela ampliação da prova que promove acessibilidade. Algumas pessoas albinas negras podem não ter a deficiência visual e por isso reivindicam acesso às cotas raciais. Nesse caso, não acredito em um “não” ou um “sim” a priori, como algumas pessoas tendem a querer estabelecer. Entendo que, sendo a pessoa com albinismo de uma família negra, provavelmente ela passou por todas as dificuldades estruturais até chegar à possibilidade de concorrer a uma vaga na universidade. 

Eu ingressei no ensino superior em meu terceiro vestibular, em uma época ainda sem políticas de cotas, no final dos anos 90. Eu era uma das três pessoas oriundas de escola pública na minha turma, vinda de uma realidade social bem diferente dos meus colegas, quase todos de classe média e alta. Fui a primeira da família do meu pai a fazer faculdade. Será que a pessoa com albinismo que está pleiteando a vaga nas cotas raciais, teria outra oportunidade para entrar na universidade? Será que a cor da pele é o único balizador sobre o pertencimento racial? 

 

Subjetividade e pertencimento

A estrutura racista que define determinadas famílias negras em lugares de precariedade social também faz com que pessoas com albinismo estejam excluídas de espaços na educação e no mercado de trabalho.

Não quero medalha de superação ou ser vista como heroína, a glamorização das conquistas pode levar ao falacioso discurso da meritocracia, em um país desigual e com abismos entre oportunidades. Chegar em espaços que alcancei, infelizmente é exceção, a desigualdade deixa muitos sonhos e expectativas pelo caminho dos indivíduos. 

Problematizar sobre a questão racial em relação ao albinismo diz respeito também à saúde mental e construção da subjetividade das pessoas albinas, principalmente na infância. Quando criança ou adolescente, eu não era a loirinha da turma, eu era a branquela de cabelo considerado ruim, nariz de batata e que não enxergava direito. Nunca me reconheci nas histórias infantis, a Cachinhos de Ouro tinha cachinhos como o meu, mas não era albina; e a Branca de Neve era branca como eu, mas tinha cabelo preto. Representatividade importa na construção de identidade de uma criança. Como me fez falta entender que meu pertencimento racial ia para além da cor da pele, que apesar dos questionamentos das pessoas, meus traços, meu cabelo, minha vivência cultural e de costumes familiares deixavam evidentes minha origem.

Almejo que o reconhecimento em relação ao albinismo e a negritude seja pela via da potência, pois o pertencimento proporciona não cair na negação da raça e da condição de albinismo. Para mim ter uma dupla negação na infância, foi muito nocivo, gerou insegurança, baixa autoestima, dentre outros conflitos internos. Havia em mim, um auto ódio que me faziam querer negar quem eu era, me aproximando e tentando pertencer a tudo que era do referencial branco.

Hoje, depois de um longo processo, não necessito me identificar com a branquitude, nem fingir ser gringa, reconheço e valorizo minha negritude. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADICHIE, C. O perigo de uma única história. 2010, disponível em: https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia/

CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. Edição Kindle.

SOUZA, N. S. Torna-se negro: “As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal,1983.

¹ Mulher com albinismo negra, Psicóloga e Mestre em políticas públicas e formação humana pela UERJ
² A visão subnormal ou baixa visão é um comprometimento significativo da visão que não pode ser corrigido com uso de óculos convencionais, lentes de contato e nem mesmo com intervenção cirúrgica. Trata-se de uma perda parcial da visão. Tal condição se enquadra na classificação de deficiência visual. (http://www.visaosubnormal.org.br/oquee.php).
³ Movimento involuntário dos olhos.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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